Perigo: derrocada legal!

Entre as frases da língua portuguesa que resistem ao tempo e caminham entre nós com uma graça queirosiana sempre renovada, encontra-se esta: «Isso é a lei!». Significa que a lei é uma dama severa e púdica, mas que pode ser amaciada, tornando-se acessível e complacente. 

A própria imagem é de um machismo enquistado – ou seja, resistente e eficaz.

Este tipo de ideologia – do jeitinho, da insídia, da fortaleza que se conquista pela argúcia, da palavrinha mansa que comove e move os espíritos sensíveis ou fracos – tem como contraponto um justicialismo que conduz a igual injustiça e impunidade.

A lei de letra maleável conduz, tal como a lei de espírito inexorável, à injustiça. É nisso que estamos.

Açodados pela avalancha da corrupção, insustentável e incontrolável em situações de desregulação financeira total – aquela a que chegou o mundo contemporâneo –, caímos, aterrados, na injustiça das generalizações: dizemos que os políticos são todos corruptos, entendemos as grandes empresas como associações de bandidos, vemos conluios em todas as zonas de atividade.

As generalizações nascem do terror e multiplicam-se até que o pânico prevaleça, o que conduz à agitação das massas e ao desaparecimento da razão, da ponderação e da capacidade de avaliação individuais.

No Brasil, neste momento, já se ouvem vozes sugerindo uma ditadura militar «temporária» que «limpe» o país – como se a democracia fosse um interruptor que se liga e desliga.

O Brasil é, apesar de tudo e com todos os seus problemas e contradições, a maior e mais estruturada democracia da América do Sul.

A democracia não é imune à corrupção – mas é muito mais resistente a ela do que qualquer ditadura.

A ideia, também cada vez mais generalizada, de que as ditaduras são melhores do que as democracias no que se refere à segurança, não é comprovada pelos factos nem pela História, antes pelo contrário: o poder absoluto trata de si e da sua oligarquia e não garante qualquer espécie de segurança ou de justiça aos seus súbditos; apenas garante o silêncio sobre as infâmias que pratica e sobre qualquer sinal de agitação social, da criminalidade quotidiana aos resultados das catástrofes naturais.

A separação, muito em voga, entre a ‘moral’ e a ‘lei’ só contribui para agravar tensões, minando as democracias.

Em tempo de crise, em vez de reforçarmos o apelo ao cumprimento rigoroso da lei, e de insistirmos na pedagogia do sistema legal, a começar pelos currículos escolares, desvalorizamo-la.

É cada vez mais frequente e audível a opinião de que determinado ato, embora legal, não é ‘moral’; ora, como há tantas ‘morais’ como seres humanos, cada um com a sua perspetiva particular e a sua visão formatada e circunscrita, torna-se impossível adotar um conjunto de valores abrangente e percetível. Por isso nos queixamos tanto da falta de ‘valores’.

Temos valores, sim – deles nasceram a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os sistemas legais democráticos. As leis foram criadas para defender e proteger valores – e por isso têm sido ampliadas, acrescentadas, modificadas.

Não me canso de perguntar em que época floresceram e vingaram os tão chorados valores perdidos – ninguém parece saber responder-me. É também disso que se alimenta o terrorismo islâmico: da dificuldade que parecemos ter em defender os valores de liberdade, igualdade e fraternidade que fundaram a contemporânea civilização ocidental.

Os moralismos marginais à lei resultam de preconceitos arreigados contra determinados estilos de vida – ou de pura e simples inveja, um dos mais funestos e clássicos males da Humanidade.

Convém sobretudo recordar que, em democracia, as leis emanam da ação política, das decisões dos representantes eleitos pelo povo, e não de instâncias não eleitas: a Justiça apenas cumpre a legislação aprovada por consenso político. Legislação que deve ser clara, acessível e transparentemente transmitida aos cidadãos.

Os trâmites judiciais, em democracia, têm regras, iguais para todos, que visam proteger direitos básicos – o direito ao bom nome, para começar. Em democracia, todos os cidadãos acusados de alguma coisa têm direito a defesa e a um julgamento justo e imparcial: não há linchamentos populares nem salvadores todo-poderosos.

Acabar com uma democracia é fácil; construi-la, demora séculos; a democracia ateniense não serve de exemplo, dado que excluía escravos e mulheres.

Andamos muito esquecidos do básico e, desse modo, arriscamo-nos a perder o mais justo de todos os sistemas políticos até hoje inventados – que não é ainda bom, mas, parafraseando Churchill, é o melhor que se conseguiu arranjar. E não é só o Brasil que está diante deste precipício.