Jogar à roleta entre Portugal e a Suíça

O mercado paralelo de transporte de emigrantes fez 12 mortes há uma semana. Mas os comportamentos de risco e o amadorismo destas viagens deixam perceber que só por sorte não há mais acidentes graves.

De porta de casa em Portugal à porta de casa na Suíça. E com toda a bagagem que queiram levar consigo – enchidos e queijos da terra incluídos. No tempo dos voos low cost e das promoções de passagens aéreas a preços inimagináveis há uns anos, a comodidade e facilidade são as principais razões que levam a maior parte dos emigrantes portugueses a optar por percorrer sobre quatro rodas os cerca de 1.500 quilómetros entre os principiais pontos de ligação dos dois países. Mas fazem-no num transporte completamente à margem das regras.

O que está em causa nem é tanto a diferença de preços. Uma viagem entre Lamego e Genebra – numa carrinha como aquela em que, há uma semana, 12 portugueses morreram, num choque frontal  – nunca ficará a menos de 130 euros. Se as malas forem muitas, o valor ‘simbólico’ a cobrar pode facilmente fazer a deslocação chegar perto dos 200 euros. Só de ida.

Um voo pela TAP entre o Porto e Genebra, na tarifa mais baixa, pode ficar pouco acima desse valor – mas o avião não recolhe os passageiros em casa, não os leva ao ponto preciso em que querem terminar a viagem e muito menos ajuda a carregar as malas.

Só que o risco é maior quando a viagem se faz nestes meios de transporte que atuam à margem da lei. Por vezes, a ânsia de chegar é tal que as paragens são reduzidas ao mínimo indispensável, porque cada minuto conta. 

Transporte à medidados passageiros e da viagem

Um condutor português que há mais de 10 anos percorre as estradas entre Portugal e a Suíça conta ao SOL que, nalguns casos, os dois condutores da carrinha – quando há dois para partilhar o volante – fazem turnos sem nunca sair da estrada ou sequer chegar a parar o veículo . «Quem vai a conduzir passa o volante ao substituto. Abranda a carrinha, larga o volante, que é agarrado pelo outro condutor, que por sua vez se senta assim que o primeiro se levanta. E tudo isto é feito em andamento», conta o motorista, que pede anonimato.

Noutros casos, quando o cansaço dá sinais, são os próprios passageiros (que, não raras vezes, são motoristas no estrangeiro) quem assegura a condução durante parte do caminho.
A concorrência é forte. Uma viagem entre a Suíça e Portugal pode custar cerca de 400 euros aos donos das carrinhas (portagens e combustível incluídos). O retorno dependerá do número de passageiros angariados em cada viagem. Mas o sistema é de tal forma amador que muitas vezes estes transportes são feitos na carrinha de um emigrante que procura companheiros de viagem para rentabilizar uma deslocação à sua terra natal.

É sobretudo nas alturas festivas – a Páscoa ou o Natal – ou nas férias de verão que o mercado realmente mexe e que a procura mais se faz sentir. E é nessas alturas que o ‘engenho’ dos motoristas de fim de semana se revela.
Por definição, as carrinhas são o meio de transporte dos emigrantes – estejam na Suíça, no Luxemburgo, em França, ou na Alemanha, são os portugueses que mais recorrem ao serviço. E também são um meio preferencial porque permitem ajustar a deslocação à medida das necessidades no que toca às rotas e aos horários de saída. Se vierem crianças a bordo, também param mais vezes, caso seja necessário.

‘Negócio sujo’

Para o secretário-geral da PrevençãoRodoviária Portuguesa,  casos como o que ficou conhecido na última semana devem forçar uma tomada de posição das autoridades nacionais. «Se o Instituto da Mobilidade e Transportes sabe que em Portugal isto acontece e que são entidades portuguesas que vão à Suíça e a França buscar compatriotas nossos para os trazer nessas circunstâncias verdadeiramente abjetas, é necessário acabar radicalmente com este tipo de negócio sujo», defende José Miguel Trigoso.

A carrinha em que seguiam os portugueses, e que se despistou perto de Lyon, na madrugada da última sexta-feira, tinha capacidade para seis passageiros, além do condutor. Mas lá dentro vinham treze pessoas, a contar com o jovem de 19 anos ao volante – que, tal como o tio, proprietário do veículo, acabou detido pelas autoridades francesas depois de passar quase uma semana internado em estado de choque, na sequência do acidente. Ontem, já depois dos interrogatórios, soube-se que ambos foram acusados de homicídio involuntário.

O número de passageiros que seguiam na carrinha (o dobro daquilo que seria permitido) só é possível porque os donos destas carrinhas «compram bancos-extra nas sucatas». Quando a clientela o exige, monta-se o banco e a carrinha ganha mais uma fila para acomodar passageiros. Vêm apertados e sabem que ficarão assim, desconfortáveis, durante pelo menos oito horas. Mas aceitam as regras do jogo.

Desta vez, porém, as regras foram superadas como nunca antes se tinha ouvido falar. Um ou dois passageiros para além do permitido até as empresas autorizadas que operam no setor fazem de tempos a tempos. A notícia de que seguiam seis pessoas a mais na carrinha surpreendeu até os mais experimentados nesta área.

O lucro compensa as multas

Mas para quem vai ao volante – que muitas vezes é também o proprietário da carrinha –, o risco da multa é largamente compensado pelo benefício de multiplicar o rendimento da viagem. 

Um passageiro a mais pode ‘custar’,  em Espanha, 40 euros. Se viajar sem cinto (o que se aplicaria a todos os que estão a mais), a multa é de 100 euros. E, conta quem conhece estes trajetos, as duas coimas raramente são aplicadas em simultâneo. Além disso, só corre esse risco quem se está a estrear nestes caminhos.

A carrinha carregada de portugueses e respetiva bagagem saiu da Suíça ao fim do dia. E não foi por acaso. «Em França, nunca há patrulhas à noite», sublinha um condutor que ainda esta semana levou emigrantes portugueses de regresso ao estrangeiro e que refere que, na passagem por território francês – onde ocorreu o acidente que vitimou os 12 portugueses – nada tinha mudado do ponto de vista das autoridades. «Passámos por uma patrulha francesa logo a seguir à fronteira e ainda pensei que me fossem mandar parar. Mas olharam, viram que tínhamos matrícula francesa e continuaram passivamente», recorda o motorista português.

Os ‘segredos’ do negócio não se esgotam em saber qual o melhor horário para evitar cruzamentos com a polícia na estrada. Como muitas vezes os emigrantes levam lembranças das suas terras para os países de acolhimento – os tais chouriços, presunto e outros produtos alimentares, que estão sujeitos a fortes restrições por exemplo na entrada para a Suíça –, é importante conhecer as estradas secundárias que são, ao mesmo tempo zonas de fronteira menos vigiadas pelas autoridades.

Empresas legais nasceramde negócios informais

A maior parte destas empresas está fixada na região centro e norte do país – é também aí que, semana após semana, regressam a maior parte dos emigrantes. Depois do acidente, vários responsáveis de empresas a operar neste setor de acordo com as regras vieram condenar a existência destes circuitos paralelos de transporte de passageiros. 

Mas, segundo um operador do setor com largos anos de experiência, todos os empresários que hoje têm empresas legalizadas e com implementação começaram  precisamente como o tio do jovem que sofreu o acidente: de forma ilegal, com um condutor ao volante (eles próprios) e com uma carrinha mais precária.