A mercearia da aldeia vai sobrevivendo às cadeias de hipermercados por causa dos velhos locais e transplantados – estrangeiros reformados que escolhem viver o resto dos seus dias neste país que dá um ótimo paraíso de exílio, para quem tem reformas de Europa rica.
Um pachorrento comentador do Café Central abana sabiamente a cabeça: “Afinal aquela gente lá em Bruxelas também não se organiza…Tantas informações, tantos meios, e não ligam a nada, cada um quer ser mais esperto do que o outro e ser mais chefe do que o chefe, e depois admiram-se…”.
Na aldeia não se usa o espanto indignado das grandes urbes. Lê-se nos jornais sobre salários de 6 mil euros/dia, vêem-se na televisão as grandes figuras da autoridade pátria garantindo que agora é que o país vai aproveitar os seus recursos, formar, reciclar, renovar e não sei que mais, e a vida continua, entre os pingos da chuva, uma festa no cão que passa, a esperança no futebol, o pão de cada dia, minimal, difícil, o silêncio crescendo nas ervas que circundam as casas desertas, de janelas entaipadas, onde há muito não mora ninguém. Há alguma estatística das casas abandonadas neste país? Ninguém parece querer saber.
O que importa aos telejornais é a drogaria da baixa lisboeta que vai fechar apesar de, segundo a lojista, incluir entre a sua clientela gente do melhor, “até marquesas”.
Foi-se o respeito pela nobreza e pelos hábitos dos urbanos bem-pensantes: os restaurantes de fast-food abrem sem lhes pedir licença, o povo atreve-se a preferir a água canalizada ao belo chafariz, é a decadência. Os bairros ditos sociais, onde se arrumaram de uma forma tão bonita os antigos bairros de lata, revelam-se afinal fábricas de crime, para surpresa geral. Ninguém se lembrou de olhar para a experiência pioneira e desastrosa das francesas HLM, que deram excelentes canções de protesto & nostalgia e, depois, a guerra em que hoje vivemos.
No campo é um descanso. Não há dinheiro, a agricultura tornou-se de subsistência, as crianças foram para a cidade com os pais, em luta pela vida, sobram os cães – “senhores, este é o país dos cães!”, escrevia José Cardoso Pires, em O Delfim – uivando, solitários, na noite, talvez contestando essa humilhação nacional de se ter oferecido ao senhor Presidente um canídeo de raça alemã.
País dos símbolos, dos feriados repostos com o seu cortejo de pontes para a Terra do Nunca, país da burocracia dolorosa a sonhar com as folgas, do antes parecer que ser, da inveja que não mata mas mói, da galinha do vizinho, do “não sejas parvo, deixa-te estar calado”, das quintas de fim de semana onde o campo ainda parece o que era, das igrejas cheias na Páscoa, das peregrinações a Fátima o ano inteiro, agarrando-se ao Céu para aguentar o peso da Terra, a distância insuportável a que os senhores da Terra estão das necessidades do quotidiano e da voz dos que se habituaram a nunca ser ouvidos.
As caras da televisão parecem, no café da aldeia, fantasmas excessivamente coloridos, vivem num mundo onde não há casas interrompidas, em tijolo por rebocar, porque o dinheiro desapareceu, nem casas desabitadas, nem ruínas de casas, nem fábricas vazias, mortas, um universo verde e cinzento, onde a natureza celebra a vitória sobre os ideais empreendedores dos mais pobres.
Aos cafés da aldeia os ingleses chamam pubs, diz uma residente, sorrindo, “ao fim da tarde ando com eles de pub em pub”, uma ginginha ali, uma cervejita acolá, aqui na aldeia os turistas não assustam ninguém, antes pelo contrário, venha um hostel carregadinho de gente nova, de sapatos de ténis, moedas soltas nos bolsos, aqui parece-lhes bem, não há petições para selecionar turistas.
No ecrã do outro mundo, perto do teto do café, um ministro e o Presidente repetem, tranquilos, aguardar “a tramitação judicial própria de um sistema democrático” a propósito de 17 angolanos que cometeram o crime de pensar pelas suas cabeças.
A pedido de vários clientes, a senhora do café muda para o futebol, e fica a tramitação concluída.