Ricardo Paes Mamede: ‘Deixámos o sistema financeiro nas mãos do BCE e de Bruxelas’

Paes Mamede é crítico da arquitetura europeia, que põe países como Portugal numa posição subalterna. Mais do que a Florida da Europa, país arrisca-se a ser como o Sul de Itália: pobre e subdesenvolvido.

Professor de Economia Política no ISCTE, Ricardo Paes Mamede ganhou protagonismo recente a debater com Teixeira dos Santos e Braga de Macedo no programa Números do Dinheiro, na RTP3. Mas há dez anos que escreve para o blogue Ladrões de Bicicletas, onde economistas de esquerda analisam a atualidade do país e da Europa. Reuniu agora os textos da sua autoria no livro A economia como desporto de combate, onde não o esconde o desagrado com o caminho seguido nos últimos anos.

Depois de reler posts de dez anos, com que sensação fica? Foi um período difícil, mas rico para a análise económica.

Em termos de análise económica foi ideal. Quem se deu ao trabalho de tentar acompanhar o que se passava aprendeu muito. Fica ideia de que muitos problemas por que passámos foram antecipados em devido momento, por várias pessoas que perceberam que muitas decisões não teriam bons resultados. Isso veio a confirmar-se.

Que decisões específicas foram mal tomadas?

Uma foi a debilidade da resposta europeia à crise. A União Europeia (UE) e os países que a compõem demoraram muito mais tempo do que as autoridades americanas a reagir à crise internacional em 2007/2008. Num segundo momento, quando reage, não acautela as diferentes condições que os Estados-membros tinham para fazer face à crise. Propôs a mesma reação aos vários Estados-membros, nomeadamente uma maior expansão orçamental, quando era muito claro que isso iria colocar alguns países sob uma enorme pressão. Em terceiro lugar, na política monetária, o BCE aumentou as taxas de juro quando a Europa já está a entrar em recessão. E demora muito tempo até desempenhar um papel decisivo para estabilizar os movimentos especulativos e combater a instabilidade financeira. E finalmente o tipo de resposta dado à crise. Muitos economistas alertaram para o risco de se gerarem espirais recessivas e de se aumentarem as dificuldades das finanças públicas com uma resposta baseada na consolidação orçamental em plena crise.

Essa dificuldade da Europa verifica-se ainda hoje?

Sim, mas penso que isso não resulta necessariamente de uma leitura errada sobre as medidas necessárias para tirar a Europa da crise, e antes de uma atitude dos poderes dominantes na Europa de utilizar a desculpa da crise e das dificuldades orçamentais para impor uma alteração de regime económico e social. A desculpa da consolidação orçamental é hoje o principal instrumento utilizado pelas lideranças europeias para que nos vários países sejam adotadas medidas que alteram de forma muito significativa o contrato social dominante nos países europeus.

No livro aborda a «financeirização» da economia nas últimas décadas, que tem gerado mais crises. As dificuldades atuais dos bancos portugueses têm a ver com isso?

Há três problemas que estão relacionados. O primeiro tem a ver com a forma como se deu a liberalização dos movimentos de capitais e a desregulamentação do sistema financeiro português nos anos 90, que fez com que a atividade bancária e o crédito se expandissem muito. Isso criou uma dinâmica de fortíssimo endividamento e um incentivo para que a economia portuguesa se dirigisse para atividades que se baseiam no crédito bancário – a começar pelo imobiliário, construção e obras públicas. Há um segundo aspeto, que é a estagnação económica que se instalou em Portugal a partir da viragem do século. Esta estagnação é em parte um resultado do endividamento que já existia, mas também está muito associada às dificuldades que Portugal revelou em viver dentro do euro, com a crescente concorrência das economias emergentes sem poder desvalorizar a moeda, e com um euro que teve tendência para se valorizar muito fortemente face ao dólar. Finalmente, há um fator específico, que são os abusos que houve internamente nos bancos, e que resultam de uma evidente deficiência na supervisão bancária.

Portugal teve de intervir recentemente no Banif, numa operação em que o BCE e a Comissão Europeia tiveram um papel ativo. É inevitável que a união bancária conduza a uma posição subalterna do país?

O processo do Banif tornou isso muito claro. Com a união bancária, houve uma transferência extraordinária de soberania. Colocámos o futuro do sistema bancário português nas mãos da Direção-Geral da Concorrência e do BCE. E não é nada certo que os interesses defendidos por essas instituições correspondam aos interesses nacionais.

Na génese da Europa parecia haver a ideia de convergência das várias economias, mas há agora uma divisão nítida entre os países do norte face aos do sul. O propósito da União desvirtuou-se?

Temos de separar a perceção do objetivos da união económica e monetária. A criação de um mercado interno com um política de concorrência muito intrusiva na vida de cada país, associada a fortes restrições na condução de políticas orçamentais, são o melhor que poderia ser idealizado por uma qualquer grande multinacional que tivesse como objetivo operar no conjunto do continente europeu com um mínimo de interferência do estado, com uma tendência permanente para a redução dos impostos sobre as empesas, dos salários e das contribuições para a segurança social. É difícil para mim pensar que este resultado não estivesse já pensado por quem produziu esta união monetária.

Mas isso provocará uma divisão cada vez mais acentuada entre os países do norte e os do sul?

Esta lógica de um federalismo que proporciona a ultraliberalização não afeta apenas os países do sul, é também um instrumento bastante eficaz para reduzir o poder negocial dos sindicatos dos países mais avançados. A desvalorização interna da periferia provoca uma desvalorização interna dos países do centro, por via da concorrência. Mas a tendência é para que haja descapitalização, seja financeira seja em termos de recursos humanos, das economias mais frágeis, que haja um processo que favorece a concentração do poder nas economias mais avançadas.

Há hoje a ideia de que Portugal pode ser um pouco a Florida da Europa.

Se as regras da união monetária não se alterarem, ser a Florida da Europa seria até um futuro altamente promissor. Mas o maior risco é que sejamos para o conjunto da Europa o que as regiões do sul da Itália são para o país transalpino. Hoje 30% dos impostos pagos na Lombardia [norte de Itália] são destinados às regiões do sul e, apesar disso, o sul é muitíssimo mais pobre do que o norte. Tem problemas crónicos de desemprego, desindustrialização, subdesenvolvimento e criminalidade, que só não se tornam explosivos porque há um nível de transferências orçamentais e um sentimento de pertença que funcionam como cola do que na prática são dois países distintos. Ora, na Europa, não temos nenhuma destas condições nem se prevê que as tenhamos tão cedo. Não temos sentido de pertença a uma nação com laços de solidariedade muito fortes, nem expectativas de ter transferências orçamentais minimamente significativas que permitam compensar o desnivelamento de capacidades produtivas, o que não augura nada de bom.

Se nada mudar, vamos ser um país com desemprego alto, criminalidade e todos esses problemas de uma economia frágil?

Tenderemos a ser um país onde e emigração em massa se torna endémica, onde pessoas altamente competentes se sentem forçadas a sair do país para terem um futuro minimamente promissor, e isso significa também que dificilmente podemos aspirar a um processo real de convergência tecnológica, cultural e de direitos sociais semelhantes aos dos países mais avançados.