Os 26 antigos membros da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa que o Ministério Público pretendia sancionar por “pagamentos ilegais” ao Grupo Mello durante a gestão do Hospital Amadora-Sintra foram todos absolvidos pelo Tribunal de Contas, por ausência de provas de que tenham atuado contra o que estava previsto no contrato e prejudicado o erário público.
A sentença, proferida no passado dia 20 e a que o SOL teve acesso, surge passados 13 anos desde o início do processo no Tribunal de Contas (TC). O Ministério Público (MP) está a estudar a sentença e ainda poderá recorrer para o plenário de juízes do Tribunal.
Os factos em causa têm mais de 20 anos: o MP pedia a condenação, com obrigação de reintegração financeira no valor global de 7,6 milhões de euros, de 26 antigos membros da ARS, entre os quais Ana Jorge (que foi depois ministra da Saúde do Governo do PS) e Constantino Sakellarides (ex-diretor-geral de Saúde), que presidiram à ARS no período em causa (entre 1996 e 2001).
‘Um contrato complexo e de interpretações divergentes’
Após o julgamento, realizado no último ano, o juiz titular do processo, Carlos Morais Antunes, concluiu que todos os réus limitaram-se a cumprir o contrato entre o Estado e a gestora do hospital, fazendo “uma interpretação ajustada do mesmo”. Além disso, os pagamentos corresponderam a “efetivos atos e serviços clínicos prestados” e não se provaram “quaisquer factos que permitissem evidenciar atuações ou omissões justificativas de censura” aos ex-dirigentes da ARS de Lisboa.
Na acusação, o MP sustentava que os réus tinham violado os seus deveres enquanto gestores de dinheiros públicos e que da sua atuação, de forma consciente ou por omissão, resultaram mais de 40 milhões de euros em encargos adicionais para o Estado. O TC concluiu, porém, que “a matéria de facto provada e não provada não permite sustentar um juízo de censura” aos antigos dirigentes.
Estes, salienta a sentença, defrontaram-se “com um projeto inovador à escala europeia: um contrato de gestão complexo e de difícil compreensão, suscetível de interpretações divergentes”, além de “uma estrutura frágil e insuficiente em meios humanos e materiais e desprovida de conhecimentos técnicos aptos à análise das questões que desde logo se suscitaram”.
Foi tudo ‘concertado’ antes com os ministros
Apesar disso, prossegue o Tribunal, “a convicção da legalidade das propostas (de pagamentos) que apresentaram à tutela não suscita qualquer censura e corresponde ao que seria exigível, no contexto envolvente em que o contrato vinha sendo executado, a um administrador e gestor de dinheiros públicos cuidadoso e diligente e preocupado com a eficiente prestação dos cuidados de saúde da população servida pelo Hospital”.
Acresce a isto “que os pagamentos correspondiam a efetivos atos clínicos realizados no Hospital”.
Por outro lado, as relações dos dirigentes da ARS com o Ministério da Saúde “eram próximas e diretas”, tendo havido “prévia concertação com a tutela nas decisões que os conselhos de administração vieram a assumir”. A interpretação feita pelos gestores do contrato entre o Estado e o Grupo Mello foi, assim, “ajustada” e em linha com “a que veio a ser sustentada no acórdão do Tribunal Arbitral” a que as duas parte recorreram devido às divergências que havia.
Em julho de 2003, de facto, o Tribunal Arbitral concluiu que o contrato de gestão estava a ser cumprido de forma correta pelo Grupo Mello e que este é que era credor do Estado – decisão que foi acatada pelo Governo de Durão Barroso, que pagou 45,2 milhões de euros à sociedade gestora do Amadora-Sintra.
Antigos governantes e gestores foram depor
No caso da sentença do TC, o juiz refere ter-se baseado na extensa documentação que consta do processo e nos depoimentos dos réus e das suas testemunhas, entre os quais contam-se ex-ministros e ex-secretários de Estado da Saúde que tiveram de lidar com o diferendo do Amadora-Sintra (Maria de Belém e Correia de Campos e Francisco Ramos e José Gomes dos Reis) e antigos administradores do hospital (como Artur Vaz e Lopes Martins).
Celebrado em 10 de outubro de 1995, o contrato de gestão do Amadora-Sintra foi a primeira Parceria Público-Privada (PPP) na área da Saúde, atribuindo a privados a gestão de um hospital público, e esteve sempre envolvida em polémica. A população que o hospital iria servir veio progressivamente a aumentar, com carências graves em termos de doenças e que não estavam previstas, segundo o Grupo Mello. E desde cedo suscitaram-se dúvidas de interpretação do contrato, entre outros aspetos – como, por exemplo, “o facto de o hospital ainda não estar totalmente pronto em termos de construção” nem ter os recursos humanos necessários quando abriu as portas, segundo salienta o TC.
Foto: Ana Jorge era uma das visadas no processo (José Sérgio/SOL)