Quando há uma urgência extrema, uma obrigação de relatar da forma mais inatacável e indesmentível uma determinada situação, a arte torna-se um percalço. Há algo de tenebroso numa fotografia que consegue capturar um momento de absoluta fragilidade como se o drama se rendesse a um clímax sublime e a realidade servisse como matéria prima para o deleitamento estético. Esse é um risco ao qual a fotografia, talvez como nenhuma outra arte, é especialmente atreita.
A morte é um bom exemplo, talvez porque não há outro momento tão absoluto e que tanto expõe a vítima no momento derradeiro em que a intimidade se torna algo de obsceno para todo o observador. Como nota Susan Sontag no segundo livro que dedicou ao tema da fotografia – Olhando o Sofrimento dos Outros – «captar uma morte que está a ocorrer e embalsamá-la para todo o sempre é algo que apenas uma câmara pode fazer», não só isso mas do lado de cá, o deste observador, «mesmo passados muitos anos depois de a fotografia ter sido tirada… bem, podemos ficar de olhos pregados nestes rostos durante muito tempo e não chegarmos ao fim do mistério, e da indecência, do nosso próprio papel como espectadores».
Sontag levantou as maiores suspeitas sobre a eficácia dos retratos do horror, indo além do ideal de que uma sociedade informada estará em condições de actuar e pôr fim a graves injustiças, a escritora e activista mostra-se preocupada com o aspecto intrusivo e voyeurista, à forma como se dá essa deslocação que a partir da realidade concebe imagens que desvelam um certo gosto pelo lado surreal. É a denúncia, no fundo, de um esteticismo que alimenta o apetite por algo de chocante.
Neste que foi o último livro publicado antes da sua morte, em 2004 – e que só chegou até nós no ano passado, numa edição da Quetzal –, Sontag reflecte não apenas sobre o impacto das imagens que capturam o horror mas sobre uma cultura mediática que terá reprogramado os nossos intintos para automaticamente transformar uma prova de uma realidade intolerável e quase inexplicável numa ficção.
«Quando Virginia Woolf refere que uma das fotografias que lhe mandaram mostra o corpo de um homem ou de uma mulher tão mutilado que poderia também ser o de um porco, o que pretende salientar é que a escala de atrocidade da guerra destrói o que identifica as pessoas como indivíduos, até como seres humanos», explica Sontag, e acrescenta: «É assim, evidentemente, o aspecto da guerra quando vista de longe, como uma imagem.»
O perigo é, portanto, o das imagens se tornarem já não a denúncia de uma realidade desumana mas as próprias ferramentas dessa desumanização, produzindo meras representações estimulantes para os sobreexcitados sentidos face ao constante assalto da sociedade de consumo.
A exposição itinerante do World Press Photo que desde o dia 28 de Abril até 22 de Maio volta a ocupar as paredes do Museu da Electricidade não nos deixa mais seguros sobre seja qual for o quadro mental com que a ela chegamos. Com a sua missão e objectivos inalterados desde que iniciou a sua actividade há seis décadas, a organização volta a premiar alguns dos trabalhos fotojornalísticos que marcaram decisivamente o ano 2015.
Boa parte das reportagens premiadas nesta 59ª edição do World Press Photo estão relacionadas com o conflito na Síria e com aquele que foi o maior movimento de pessoas na Europa desde a II Guerra Mundial. São mais de 150 as fotografias em exibição no espaço do museu à beira Tejo. Uma vez mais, o júri teve uma tarefa hercúlea na selecção dos melhores trabalhos, tendo concorrido 5775 fotógrafos de 128 países com um total de 82951 imagens.
Confrontado com a escolha feita pelo júri desta edição, o observador mal pode conter as lágrimas ao ver um pai sentado com o olhar entre a incredulidade e a sensação de que lhe foi tirado algo mais que a vida de braços abertos numa imagem que lembra as representações da Pietà, só que pior, muito mais doloroso. A filha não completou 33 anos, não teria mais de cinco anos, e custa a acreditar que esteja morta, não estivesse coberta de sangue. Parece ainda viva pela forma como é segurada pelo pai. A incredulidade de tão profunda parece digna de operar um milagre e desfazer aquele desastre. Mas tudo isto é já a ficção de um observador, que depois só pode sentir-se a mais num momento de horrorosa intimidade. Passou-se na Síria, durante um dos bombardeamentos. É inacreditável mas repete-se todos os dias.
Há também a imagem de uma menina de sete anos sentada, sozinha, num gesto simples de quem se distrai como se ainda pudesse brincar, mas esse gesto mais do que triste é atroz, porque a menina tem a pele toda queimada, a própria cabeça, e além do negro há um tom de roxo que se torna um susto. Quando explodiu a bomba brincava nas traseiras do casebre onde vivia com a família. Foi no Sudão do Sul. E falamos desta distância para assinalar outra, referida por Sontag. «Vítimas, familiares enlutados, consumidores de notícias – todos têm a sua própria proximidade ou distância da guerra. As representações mais cruas da guerra, e de corpos atingidos pela calamidade, são as que parecem mais longínquas, e por isso com menos probabilidades de serem conhecidas. Com vítimas mais próximas, conta-se com uma maior discrição do fotógrafo.»
Se há imagens que não nos dão espaço para descobrir a verdade, se logo impõem um excesso que nos atira para a ficção, outras têm uma maior capacidade de transporte, e a sua força está do lado de uma espécie de resistência a serem descobertas de imediato, pelo choque, obrigando a um olhar que investiga. Isso mesmo indicou o fotógrafo português premiado no concurso do World Press Photo 2015 na sua análise da imagem do australiano Warren Richardson que ganhou o grande prémio.
Hope for a New Life mostra-nos um bebé a ser passado entre mãos através de uma falha numa vedação de arame. Um pouco desfocada, sem grande definição e a preto e branco, esta é uma imagem que se tem algo de confrangedor, vai ganhando luz e impõe uma estranha esperança. É o momento em que um grupo de refugiados sírios consegue entrar na União Europeia, depois de horas à procura de uma aberta na cerca de quatro metros de altura que veio a cobrir toda a extensão da fronteira entre a Sérvia e a Hungria.
Mário Cruz – fotojornalista da agência Lusa, que aos 28 anos se torna o 5º português distinguido pelo World Press Photo, vencendo na categoria «Assuntos Contemporâneos», concorreu com «Talibés, Escravos dos Tempos Modernos», um ensaio fotográfico sobre crianças e adolescentes que são feitos escravos em falsas escolas corânicas no Senegal – disse à revista Visão que «a fotografia do ano mostra o tema do ano, de maneira diferente: é uma fotografia directa, que tem de ser analisada para ser percebida. Dois refugiados a passar um bebé através do arame farpado, na fronteira entre a Sérvia e a Hungria, fotografados à noite sob um forte controlo policial. É mais um caso de sobrevivência humanitária, no entanto, revela um lado que não costumamos ver. Passámos o ano a ver barcos de refugiados desesperados, houve imagens que nos ficaram na memória… Mas a ligação humana mostrada por Warren, ao revelar este olhar assustado, dramático, não deve deixar ninguém indiferente.»