Meira e Cruz estava a um ano de poder sair sem penalizações, mas não aguentou as decisões avulsas e a estagnação, ‘crise’ que começara anos antes. «Portugal sempre teve uma boa escola de cirurgia para médicos e um dos centros de excelência era a Unidade de Urgência Cirúrgica em São José. Em 1991, foi fechada por decisão administrativa», exemplifica. Os meios foram diminuindo, mas a gota de água foi os chefes deixarem de ser nomeados por concurso e passarem a ser escolhas das administrações, «muitas vezes colocações pessoais».
Passaram a chamar-lhes ‘coordenadores’, retirando-lhes o suplemento salarial de 10% e a isenção de horário. Mas o cirurgião não pôde sequer subir na carreira à qual se dedicava há três décadas. Quando saiu, esperava há seis anos a abertura de concursos, que só viriam em 2012 e 2015.
Atualmente, João Meira e Cruz opera apenas no privado. Saiu com uma penalização de 13% na reforma e não se arrepende. Se tivesse esperado, o corte poderia ter sido de 40% como aconteceu com outros colegas. Todos os dias recebe e-mails de empresas a proporem-lhe fazer horas nos hospitais públicos com falta de médicos. Pagam 25 a 28 euros, seja em dia de semana, fim de semana ou feriados, e seja qual for a tarefa. Nunca aceitou: «Ia voltar em que condições? Quem é que seguia os doentes que eu operasse naquelas horas, quando essa é a minha obrigação enquanto médico? Ia ser comandado por pessoas com 30 e 40 anos quando eu não pude progredir? Não tem a ver com a idade, mas com a experiência».
O fim da lógica humanista
Para o cirurgião, há uma perda irremediável no SNS: a lógica humanista deu lugar à lógica financeira. E é isso que o faz recusar. «Sou de um tempo em que os médicos acompanhavam os doentes, iam ao fim de semana se fosse preciso mesmo sem serem pagos. Quando deixa de haver incentivos profissionais, e uma valorização da carreira e da experiência, esta lógica é posta em causa. As pessoas começam a pensar mais em si e no dinheiro».
Se voltasse, até o podiam deixar fazer as horas que quisesse sem ganhar por isso. Mas sem enfermeiros, auxiliares e equipas para esse cuidado extra. «Se há pessoas que aceitam por 2.000, 3.000 ou 5.000 vai depender das suas circunstâncias mas para mim é uma questão de encarar a medicina como trabalho devotado ou simples emprego».
Só por gosto
Teresa Coelho, de 65 anos, admite que falta pessoal e que é sobretudo por amor à camisola que se regressa ao SNS depois de pedir a reforma ao atingir a idade legal ou para fugir ao crescendo de penalizações, como foi o seu caso.
«No privado, ficam com a reforma e ganham a 100%. Até podem fazer menos horas e ganhar mais. No Estado, aproveitaram-se do nosso gosto em estar».
A sua decisão foi simples, quase de um dia para o outro. Em 2011, Teresa também estava a um ano de poder sair sem penalizações, mas fez as contas e compensava pedir a reforma em vez de ter mais cortes no futuro. Já tinha começado o recrutamento de reformados – a medida foi lançada em 2010 pela então ministra socialista Ana Jorge – por isso sabia que podia voltar, o que depressa concretizou.
Saiu em junho e voltou em setembro. Era nova, não se sentia cansada e não tinha «apetência» pela privada, justifica. Além disso, queria um lugar fixo: «No privado, implica andar na estrada, entre um local e outro».
De regresso ao gabinete num agrupamento de centros de saúde em Coimbra, pôde até recuperar os seus doentes. E depressa sentiu que tinha decidido bem. «Hoje, em 15 médicos, somos seis reformados. Sentimos que somos necessários e que sem nós seria difícil dar resposta».
Na altura, o incentivo financeiro foi quase zero – na primeira leva de contratos de reformados, os que tinham saído antecipadamente ficavam com a reforma congelada e recuperavam o salário. Teresa Coelho regressou a ganhar mais 150 euros do que se tivesse ficado em casa.
Desde o ano passado, a remuneração melhorou: o Governo garantiu que todos os reformados recebem a pensão acrescida de um terço do vencimento ou vice-versa. Agora, em maio, passam para o novo regime da pensão mais 75% do salário, ou seja, mais do dobro. Teresa ainda não fez contas, continua a dar o mesmo: 36 horas semanais.
As dores dos outros
Quando ‘saiu’, não estava tudo bem: «Eu era diretora e passámos a coordenadores, a ser correios de transmissão de ordens superiores». Se isso a irritou por uns tempos, fez as pazes com o sistema: já tinha chegado onde queria na hierarquia e voltou tranquilamente ao lugar de médica sem a responsabilidade de gestão.
Mas a nuvem mantém-se, admite. «Como reformados já não estamos numa carreira, mas sentimos as dores dos outros». Nos últimos anos houve mais pedidos para justificarem as prescrições, mas isso sempre aconteceu «de forma mais ou menos encapotada», lembra. O pior, admite, é a falta de uniformidade nas contratações, que faz com que coexistam centros de saúde com carências e Unidades de Saúde Familiar bem apetrechadas. Mas também as más condições físicas. «Escadas e mais escadas, elevador sempre avariado, não passa uma maca do rés-do-chão ao cimo. Estamos para mudar há 20 anos e nada. Agora já há terreno, talvez mais dez anos», desabafa. Possivelmente, já não será no seu tempo.
O Governo estendeu, entretanto, os contratos dos reformados por mais três anos, até 2018. «Estou até a ser necessária. Se sair em 2018, terei 67 anos. Já não vou fazer mais nada. Tenho livros para ler, viagens para fazer», diz Teresa. Meira e Cruz guarda mais mágoa: estava ligado ao hospital e tinha outras expectativas, que hoje na condição de reformado já não poderia cumprir. Mas, sobretudo, lamenta ver o SNS a desmoronar-se.
Atrair e fixar mais médicos poderia até significar maior despesa pública dando mais meios aos serviços, mas é uma questão de fazer as contas: «Os cidadãos continuam a pagar impostos para o SNS e ainda gastam dinheiro em seguros porque o serviço público não lhes dá resposta. A restruturação do SNS seria simples: não pode basear-se apenas em princípios económico-financeiros, tem de ter em conta os interesses dos cidadãos-doentes e os interesses técnico-profissionais».
Hoje, vê a diferença na forma como os doentes o cumprimentam: «Para uma pessoa que opere no público, se calhar sou é mais um. Às vezes nunca viram ou não veem mais o médico que os opera. Um doente do privado olha -nos de outra maneira». No privado, há regras, reconhece, mas não só: «O hospital tem em conta a minha disponibilidade. Se quiser ter férias no Natal, tenho. Se necessário, sou substituído. Estou integrado numa estrutura, mas, como profissional médico, sou dono de mim próprio. No SNS, é pagar o menos possível e ter escravos».