João Goulão: ‘A lei do álcool reforçou a autoridade dos pais’

Quase um ano depois da proibição total do álcool a menores de 18 anos, o diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências admite que faltam meios de fiscalização. Um sucesso maior continua a ser a descriminalização das drogas, há 15 anos, muito elogiada na ONU.

Quase um ano depois da proibição total do álcool a menores de 18 anos, considera que a lei está a ser eficaz?

É evidente que, a par da aprovação de uma lei, tem de haver mecanismos de fiscalização e aplicação efetiva. Mas a lei, em si só, constituiu um instrumento importante a nível pedagógico e de reforço da autoridade parental. Com a primeira alteração, em 2012, os pais viram-se confrontados com a questão difícil de gerir da diferenciação na idade para beber cerveja e vinho (16 anos) e para beber bebidas brancas (18). A uniformidade parece estar a ser útil e faz sentido à luz de fundamentos científicos: quanto mais precoce é o início dos consumos,  maior é a probabilidade de se desenvolver dependência e de haver efeitos nocivos.

Sentia que essa era uma preocupação dos pais?

A pressão dos pares é muito grande e, se um jovem aparece a dizer que todos os amigos fazem, o facto de uma lei fundamentada fixar um limite reforça claramente a autoridade. Os pais podem passar a dizer: “Os teus amigos fazem, mas não deviam porque até do ponto de vista legal houve motivos suficientes para proibir”.

Se o sentido era mais uma mudança de mentalidade, acredita que isso é possível sem mais meios?

Sim, esse era o grande objetivo. Mas é evidente que faltam meios e há dificuldades práticas. O facto de alguém adquirir álcool no espaço público e o dispensar a outrem ilude a responsabilidade de quem vende. Temos consciência de que isso complica tudo.

Mesmo assim, pode falar de sucesso?

É um caminho que se vai fazendo. Na nossa cultura, a capacidade de fiscalizar e levar à letra a lei é um bocado diminuída e terá de ir melhorando aos poucos. Tive uma vez a experiência nos Estados Unidos e até eu pensei se não era um bocado fundamentalista. Na noite do 21.º aniversário de um dos meus filhos, fomos a um bar de jazz em São Francisco e entre as dez da noite e a meia-noite pura e simplesmente não lhe serviram álcool. À meia-noite em ponto, o empregado apareceu de sorriso rasgado a oferecer-lhe uma cerveja. Quando perguntei se aquilo não era um bocado palerma, o homem respondeu:  “Meu caro amigo, até posso concordar consigo, mas o que é facto é que, se antes da meia-noite aparecesse a fiscalização e visse que tinha servido álcool a um menor de 21 anos, fechavam-me a porta imediatamente”. Não é propriamente isso que advogo, mas tem de se sentir algum impacto do não cumprimento da lei e isso vai levar tempo a construir.

Participou, no mês passado, na sessão especial da Assembleia Geral da ONU sobre drogas. Ainda se surpreende com a reação à descriminalização em Portugal, cada vez mais reconhecida como caso de sucesso?

É espantoso. Fomos mesmo a estrela da companhia. O caso português foi citado em quase todas as mesas redondas e intervenções de ministros e delegados.

Com impacto nos trabalhos?

O que estava ali em causa era a aprovação de um documento que teria de obter o consenso de todos os países e havia dois pontos de discórdia. Um era relativo à necessidade de políticas de redução de danos como programas de troca de seringas, que ainda são vistas por muitos como uma contemporização com os consumos. A nossa perspetiva é a de que essas políticas radicam na assunção de que, mesmo quando um indivíduo não tem condições (porque não quer ou não pode), é merecedor do investimento do Estado para ter maior esperança de vida e qualidade de vida. E isto faz toda a diferença. No final, foi possível elencar uma série de políticas nesse sentido, mas não conseguimos que a expressão ‘redução de danos’ entrasse no documento final. Por outro lado, batemo-nos por ser banida a menção à pena de morte em crimes ligados à droga, o que também não aconteceu.

Não se foi mais longe porque as medidas implicam investimento ou por não ser consensual que a dependência é uma doença?

As duas coisas. Mas não existe de facto essa ideia de forma generalizada. Temos feito um caminho importante na mudança de conceito, basta ver a transição desta pasta da Justiça e Administração Interna para a Saúde, mas em Portugal o caminho foi mais rápido e acredito que muito influenciado por uma experiência muito particular. Lá fora , alguns países continuam a usar a palavra ‘vício’. 

Em Portugal, o preconceito está completamente ultrapassado?

Creio que foi muito minorado e que a generalidade da população não fala da toxicodependência como vício e assume que se trata de uma doença. É uma doença naturalmente autoinfligida, mas há tantas outras.

Quase parece maior o estigma em torno da obesidade, que tem estado em discussão.

Exatamente, começa a ser. Esta perceção diferente em torno da droga resulta muito do padrão de difusão da toxicodependência em Portugal: foi um problema que atingiu todas as classes. Tem-se falado do regresso de uma certa luta de classes e penso que, no caso da droga, aproveitámos uma janela de oportunidade para aprovar a lei em que isso não se sentia minimamente nesta matéria, porque era um problema transversal.

Foi há 15 anos. Na altura tinha noção do pioneirismo que era descriminalizar o consumo de droga?

Só o senti mais tarde. Havia alguns modelos tidos como vanguardistas, nomeadamente o holandês, mas fomos muito além disso porque ao nível da legislação houve uma alteração de fundo com a descriminalização do consumo de todas as substâncias. Na Holanda isso nunca aconteceu, existe é o preceito constitucional de que determinados crimes não são perseguidos, o que permitiu abrir até os estabelecimentos que conhecemos. Em Portugal, a descriminalização transmitiu uma imagem mais ampla de estar em causa a saúde pública e houve esse investimento.

O facto de os decisores de então serem de uma geração que conviveu de perto com a realidade de experimentação nos anos 70 e 80, que levou a casos de dependência e até morte, foi determinante? 

Creio que terá influenciado, hoje estamos todos na casa dos 50 e 60 anos. Eu, António Guterres, mesmo José Sócrates. Acho que o sentíamos todos como algo próximo. Era comum ouvir-se uma mãe de família de classe média dizer que o filho era um bom rapaz, alguém a precisar de ajuda e não um bandido. Tenho essa imagem.

Recorda alguém em particular?

Lembro, por exemplo, o irmão do engenheiro Sócrates, o António, que chegou a ser meu doente e depois meu assessor de imprensa. Morreu na sequência de um transplante de pulmão, uma condição complicada que resultou para todos os efeitos do seu historial de consumo. Mas encontrávamos problemas em todas as classes sociais e isto fez com que a proposta fosse muitíssimo bem aceite.