Só para chatear

O frenesim provocado pela singela ideia, apresentada pelo Bloco de Esquerda, de alterar a palavra ‘cidadão’ para ‘cidadania’, é um interessantíssimo sintoma da “psicanálise mítica” do português, que Eduardo Lourenço tão argutamente analisou em O Labirinto da Saudade.

Um dos elementos centrais dessa inconsciente superconsciência de si que o português tem é o Passado Redentor: tudo o que hoje existe já existiu mais e melhor em épocas anteriores. Assim, o Bilhete de Identidade seria muito melhor do que o Cartão de Cidadão: por aí começa a crítica dos opositores à alteração do nome.

Esquecem, porém, que também esse modelo de reconhecimento utilizava o substantivo abstrato e não individualizado: era Bilhete de Identidade e não Bilhete do Identificado. Entendia-se, por conseguinte, que a noção de identidade genérica suplantava a de identificação pessoal. Ora o que o Bloco de Esquerda propôs foi exatamente a mesma operação.

Parece-me evidente que o conceito de cidadania excede a soma das singularidades dos cidadãos.

O cartão descreve as características de um indivíduo integrado num determinado país, com o seu específico corpo legislativo, e incluído num sistema político e socio-económico mais amplo, que é o da União Europeia. Falta, aliás, ao Cartão de Cidadão um dado essencial: o número de eleitor.

A identidade prende-se com características culturais de outro tipo: tradições familiares, eventualmente até religiosas, convicções íntimas.

A identidade pode até entrar em conflito com a cidadania – pensemos, por exemplo, em práticas como a excisão do clítoris, defendida pelos que pretendem impô-la às suas filhas como “uma questão de identidade cultural”. Idem para os que alegam “tradições identitárias” para forçar as meninas a deixar de estudar e a casamentos precoces.

A cidadania europeia não permite tais expressões identitárias; quem a requisita deve conformar-se aos códigos de liberdade e autodeterminação individual que essa cidadania pressupõe.

No lugar de Catarina Martins, eu teria proposto ao primeiro-ministro que instituísse a alteração na denominação do Cartão, sem qualquer alarde.

Não me recordo de que a mudança do Bilhete de Identidade para o Cartão de Cidadão tenha sido alvo de discussão pública; creio que é uma questão que pode ser resolvida administrativamente, com uma simples portaria. Se não é, deveria ser: não custa um tostão.

A proposta referia-se aos novos cartões, e não a refazer todos os que existem – pormenor que os críticos escamotearam. Não se perderia, também, tempo algum – pelo que a desculpa das ‘prioridades’ não colhe.

O alarido em redor deste tema não encontra causa racional: é ‘fraturante’ sugerir que se substitua uma palavra personalizada no masculino por outra que não só abrange os dois géneros como possui um maior grau de rigor, uma vez que se trata do cartão que define a pertença a uma determinada comunidade política?

Surpreende que tanta gente, incluindo muitas e muitos excelsos intelectuais que se mantêm em silêncio perante atentados graves aos direitos humanos (os presos políticos em Angola, por exemplo) se tenha insurgido nas redes sociais contra esta proposta, com indignação ou troça.

A militância pelo ‘politicamente incorreto’, que anda mais ativa do que a ‘politicamente correta’, revelou-se no seu esplendor de pânico diante de qualquer mudança – e incluiu os comunistas, esses revolucionários sempre defensores do conservadorismo nos costumes.

Sabemos que o Partido Comunista continua a considerar as questões de género frioleiras burguesas, e a comover-se com a ideia da camarada modesta que apoia a luta heróica do seu macho: era assim no Até Amanhã, Camaradas de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), era assim na resistência ao nazismo, como mostra a excelente série Uma Aldeia Francesa, emitida pela RTP2, e assim continua a ser.

Talvez essa seja uma das razões para a manutenção de um eleitorado fiel ao Partido Comunista Português; o sistema patriarcal permanece incrustado como ‘natural’ no subconsciente nacional.

Um estudo recente indica que mais de metade das mulheres portuguesas acha que as mães deveriam trabalhar apenas a tempo parcial – e quase um quarto da população pensa que o ideal seria que as mães não trabalhassem.

Qualquer mínimo gesto de mudança é entendido como um atentado a esta santa paz e reduzido à irrisão do ‘só para chatear’.

Considerar a igualdade dos sexos uma prioridade é uma chatice, claro – mesmo ou sobretudo quando é de borla e a palavrinha nova até calha a ser, sob qualquer perspetiva, mais ajustada ao objeto do que a antiga.

Qualquer dia, sei lá, chegaremos ao descalabro de ter feministas à frente de governos.

inespedrosa.sol@gmail.com