Não são assim tantos os paralelismos que se podem desenhar entre as vidas de Stefan Zweig e Michel de Montaigne. Ambos vivem durante períodos particularmente perigosos da história europeia mas, mesmo prestando serviço público durante as guerras religiosas da segunda metade do século XVI, Montaigne, católico-romano, logrou desempenhar um papel moderador, granjeando respeito tanto por parte do rei católico Henrique III, como por parte de Henrique de Navarra, futuro Henrique IV de França. E, quando em 1572 as ruas de Paris fediam a sangue, Montaigne completava o primeiro ano do seu famoso retiro voluntário durante o qual escreveu os seus ensaios, construindo entre si e o mundo uma muralha de volume encadernados, tanto física como mental.
Pelo contrário, e não menosprezando a devastação provocada pelas guerras religiosas fratricidas que atravessaram a Europa durante os períodos da Reforma e Contra-Reforma, Stefan Zweig assistiu, ainda jovem, à primeira grande destruição do mundo moderno e principalmente, para os seus interesses mais particulares, do ambiente intelectual que a herança do Congresso de Viena o Concerto Europeu do Príncipe Metternich tinham tornado possível, apesar da sua progressiva erosão política durante a segunda metade do século XIX. É esta Europa de antes que Zweig retrato num dos seus livros essenciais, O Mundo de Ontem (Assírio & Alvim, 2015). Anos depois, a nova Europa – ou o pouco que da velha Europa ainda restava –, palco onde, entretanto, se tornara um dos nomes mais reconhecidos do panorama cultural, morreria um pouco mais e com mais estrondo ainda. Desta vez, contudo, a sua condição de nascença, o sangue e a cultura judaica que lhe corriam nas veias, tornaram-no um inimigo existencial da tanatopolítica nazi e, assim, a fuga era a única solução, primeiro para Inglaterra, em 1934, e depois para o Brasil. E sito apesar de alguns dos textos de Zweig, paradoxalmente ou não, terem sido recebidos com particular entusiasmo junto dos círculos nacionalistas, como a sua biografia de Joseph Fouché, uma escorregadia figura do período revolucionário francês e com uma capacidade de sobrevivência aos regimes e uma plasticidade ideológica com igual apenas em Talleyrand.
Em 1942, já no Brasil, quando a Declaração das Nações Unidas começava a anunciar um novo rumo para a Grande Guerra, os Zweigs decidiram morrer, convictos de que a sua condição e memória cultural, acontecesse ou que acontecesse ao mundo, nunca mais seriam outra coisa que a de estrangeiros.
Há, contudo, algo singularmente forte a unir estes dois autores. Ambos têm como pano de fundo comum uma Europa em profunda mudança – Montaigne a falência dos sonhos imperiais medievos e Zweig as trincheiras e o anti-semitismo – e ambos respondem, combatem ou fogem a essa desagregação com uma curiosidade plena e perene. E é exactamente isto que mais une biógrafo – a palavra é aqui usada com alguma liberdade, já que Montaigne não é uma biografia exemplarmente canónica – e biografado, isto é, uma desmedida curiosidade, a qual, no caso de Zweig, o fez dedicar-se ao estudo e à escrita da vida e obra de grandes figuras intelectuais da cultura ocidental, mais destacadamente da literatura. Esta obra dedicada ao estadista e filósofo francês é um produto desta curiosidade e, também, o último dos esboços biográficos escritos por Zweig.
Tradução do alemão: Maria Elsa Neves e Maria José Diniz
N.º de páginas: 96
PVP: 13,30€
Mais do que um simples detalhe cronológico, a proximidade temporal entre este texto e a morte do seu autor é significativa, sem que se pretenda aqui sugerir uma ligação necessária entre os dois eventos. O que motiva Montaigne no seu longo apartar do mundo é a procura de um locus absolutamente livre para a escrita e o que aparta Zweig e a sua velha Europa do mundo em que vive é exactamente a impossibilidade de reconstituir essa liberdade que sempre animou a sua escrita, patente no seu testamento de despedida. Montaigne é, sem dúvida, um dos vectores do pensamento europeu que se construiu entre a época moderna e o século XIX e, por isso, um dos símbolos mais relevantes do ambiente e da forma de pensar a cujo estertor Zweig assistiu. E, também por isso, a Europa que morre e que arrasta consigo o autor austríaco é, em parte, a Europa de Montaigne. Pensar livremente, como Zweig diria, é honrar todas as outras liberdades e, tanto em Zweig como em Montaigne, foi a sua curiosidade permanente que os levou a honrar, assim, todas as liberdades e, acima de tudo, a maior de todas as liberdades, a da cultura.
Uma nota final para destacar que, infelizmente, a edição portuguesa desta obra, não fugindo ao paradigma sóbrio da Assírio – ao menos isso sobreviveu –, fica, tanto em conteúdo como em forma, bastante aquém da belíssima edição inglesa da Pushkin Press, que é não só uma das joias da coroa do seu catálogo, como também uma edição que deveria servir de modelo para todas as edições desta obra de Stefan Zweig.