A ambição e a glória de Cervantes

Natural de Alcalá de Henares, onde viria a morrer perto de cumprir 69 anos, a 22 de Abril de 1616, Miguel de Cervantes teve uma vida atribulada. Começou por dedicar-se às armas e participou na batalha de Lepanto, em outubro de 1571, que opôs a Liga Santa às forças turcas do Império Otomano. No regresso…

Exceção feita a um conjunto de poemas surgidos quando tinha 20 ou 21 anos e à carta em que relatou as peripécias argelinas, a crítica tem identificado duas fases na sua obra. De um lado temos a produção que abarca as obras publicadas entre A Galatea (1585) e a primeira parte de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha (1605), 30 anos ao longo dos quais conquistaria timidamente terreno na atenção do público. Teve então de travar uma pequena guerra fria com Lope de Vega, poeta e dramaturgo cuja celebridade era então muito superior à do criador do cavaleiro da triste figura, e que escreveu acerca da primeira parte da obra-prima de Cervantes: «De todas as obras deste ano, nenhuma tão má e votada ao esquecimento como o Quixote». O poder de Lope de Vega junto de mecenas e editores era tal que Cervantes se veria obrigado a solicitar-lhe «civismo» num dos prólogos à segunda parte do Quixote (1615).

Uma enormidade histórica

Cervantes viria a cumprir, em apenas três anos, uma enormidade histórica. Em 1613, dois anos antes de publicar a segunda parte de Quixote, trouxera a lume o seu testamento literário, Novelas Exemplares. A estas obras absolutamente cimeiras da história literária haveria que acrescentar Os Trabalhos de Persiles e Segismunda (1617), publicada postumamente. O primeiro período, de 30 anos, revela-se, no entanto, determinante para estes derradeiros anos que lhe trariam a glória. À conta do seu comportamento em Argel, por exemplo, conquistou contratos para escrever comédias e o decisivo acordo com Francisco de Robles que previa a publicação de um livro de cavalarias, em 1605. Esse livro só poderia ser o Quixote.

O autor planeava já então um rol de formidável ambição. Tencionava meter a colher em todos os géneros: a novela, com Novelas Exemplares; o prestigioso género da novela bizantina, com Persiles; a poesia narrativa, projetada em Viagem de Parnaso, ou dramática com Comedias; e o teatro, o género que mais o obcecou, com Entremeses. Mas havia ainda outros projetos, entre os quais um poema épico que foi forçado a adiar por se deparar com um desses felizes acasos que provavelmente mudaram a História. É que em 1614, ecoando o excecional sucesso da primeira parte do Quixote, um tal Alonso Fernández de Avellaneda lançou uma versão não autorizada de uma segunda parte das aventuras do cavaleiro. Contra tal Quixote apócrifo, Cervantes lança-se na empresa de uma segunda parte, publicada em 1615.

Quando Quixote volta a ser Alonso

Avellaneda é visado no miolo da própria narrativa de Cervantes, e para pasmo e regozijo dos teóricos da literatura anda também por lá um outro livro que intervém diretamente na trama e converte Quixote e Sancho em estrelas ambíguas de um mundo de pernas para o ar. Cervantes comete a ousadia de fazer das personagens da segunda parte leitoras da primeira, revertendo subliminarmente toda a lógica em que a primeira parte se apoiara.

Desapossado do seu projeto cavaleiresco, derrotado pela ficção que a própria realidade, influenciada pela leitura do livro, engendrara, Dom Quixote tira a máscara e resta apenas o real árido de Alonso Quijano, aquele que, nutrido da leitura dos livros de cavalarias, sonhou um dia ser Dom Quixote. No leito da morte, a seu lado, um escudeiro que na primeira parte se movera um tanto incautamente por interesse material pede-lhe agora que não morra. E quando Alonso Quijano diz ser Alonso, e que Dom Quixote não fora senão invenção, é o pacato e maduro Sancho, que Kafka disse ter em Quixote o seu fantasma, que lhe exige ser ainda Dom Quixote e partir à aventura, cumprindo o seu destino.

Todos os géneros num só romance

Este magnífico elogio da literatura sem qualquer programa estético, antes assente na humanidade palpável de Dom Quixote e Sancho Pança, triunfaria séculos a fio. Entendido à época como insólito e divertido livro de cavalarias, o Quixote viria a ser, a partir do século XVIII, interpretado como excecional sátira moral. Schelling encontrava na «luta do real com o ideal» o signo maior da obra cervantina.

A obra-prima de Cervantes abria então diretamente a porta da nossa modernidade, que foi sempre a sua, e fê-lo associando o mundo inverosímil, com uma dose de fantástico e sobrenatural, e episódios realistas, tão cheios de sinais dos dias comuns. Fê-lo ainda simulando inspiração real em factos que eram afinal inventados pelo próprio autor. Cervantes deu à luz o romance moderno como forma total, reunindo nele todos os géneros do seu tempo e, em rigor, de todos os tempos, da oratória à épica, do conto ao teatro e à poesia, acumulando registos populares e eruditos, arcaísmos e neologismos, estratégias novecentistas como a metaficção ou a mise en abyme. Já se vê por que não é talvez excessivo afirmar, como Francisco Rico, que com o Quixote Cervantes inventou não apenas o romance, mas toda a história do romance.