Vanessa. O que se faz ao lugar aonde se foi feliz?

O lugar mais inabitável é aquele onde se foi feliz. A sentença de Cesare Pavese é definitiva e não dá hipótese. Não se pode voltar aos sítios das felicidades já acontecidas.

(Chorar é uma coisa que chateia).

E no entanto a ideia da repetição da felicidade é um básico das coleções de comportamentos obsessivos. O tempo não trata a felicidade como as dores. O esquecimento das felicidades não faz parte dos catálogos e antes pelo contrário. A cabeça das pessoas encarrega-se de as multiplicar, às felicidades passadas, quando não as inventam utilizando um mecanismo mental de sobrevivência que são as “boas recordações”. As melhores das “boas recordações” são muitas vezes ficcionadas pela nossa cabeça fixada no instinto de sobrevivência.

O que fazemos a um lugar de onde temos “boas recordações”, partindo do princípio que não foram inventadas? Voltamos e voltamos. O que fazemos com uma pessoa de quem se tem “boas recordações”? Insistimos, repetimos. Às vezes uma e outra coisa até podem correr bem. A vida às vezes corre bem embora em Portugal estejamos viciados no “mais ou menos”. Segundo os teóricos da auto-ajuda esse “mais ou menos” que nos viciou condena-nos ao “mais ou menos” até ao infinito. Há uma espécie de adição coletiva ao “mais ou menos” e provavelmente isso reforça a inabitalidade do passado feliz, do presente normal e do futuro incerto.

– Oh que caraças. O que estão vocês a fazer aqui?

Estava eu a falar com uma amiga minha, bastante menos tonta do que a Vanessa, sobre todo este tipo de coisas que esporadicamente me vêm à cabeça quando ela nos apareceu à frente. Estávamos num dos poucos sítios de Lisboa em que se pode beber cerveja Peroni. A Vanessa vinha eufórica. Eu gosto da euforia. Sometimes. Deve ser por isso que gosto da Vanessa, apesar de tudo, e também porque ela me lembra coisas que me fizeram feliz, pessoas com quem eu fui feliz, lugares onde fui desmesurada e quase parvamente feliz. A pessoa embriagada de felicidade parece sempre um bocado parva. Digo eu.

– Lembram-se do Zé Miguel? Aquele Zé Miguel com quem eu andei em 2008?

Nós lembrávamo-nos do Zé Miguel, e de todos os outros, porque a Vanessa sempre nos tinha contado pormenorizadamente as aventuras e desventuras com todos os zés miguéis que, em conjunto, davam uma boa telenovela. Cheia de apontamentos mexicanos, mas ainda assim uma telenovela. Afinal, a vida está cheia de apontamentos mexicanos. A vida é pirosa. É de uma arrogância incrível a nossa condenação daquilo que é piroso – estamos a condenar a vida, muitas vezes a nossa, e a de praticamente toda a gente que conhecemos. A piroseira é um dos instintos vitais, aliada à procura da felicidade que vem na Constituição americana, mesmo que seja nas coisas felizes do passado longínquo, aquelas que para Cesare Pavese eram “inabitáveis”.

– Então o Zé Miguel o quê?

– Combinei ir com ele a Londres.

A Vanessa, assim do nada, decidiu ir viajar com o Zé Miguel que não via desde 2008.

– Isso não é um bocado arriscado? Não o vias há que tempos e agora vais com ele para Londres?

Eu e a minha amiga mais sensata do que a Vanessa decidimos colocar umas questões pertinentes. Infelizmente, a Vanessa fez-se surda.

– Oh pá, vocês são umas chatas do caraças. Eu e o Zé Miguel fomos muito felizes em Londres. Eu adoro Londres e já quase me tinha esquecido de como adorava o Zé Miguel. Vai ser absolutamente espetacular. Já marcámos as passagens e o hotel. Ficamos só num quarto para poupar.

– Para poupar?

– Sim, para poupar, que mal é que tem?

(continua)