Não é caso para menos: trata-se do objeto de maior valor patrimonial em território nacional e desloca-se ao estrangeiro pela primeira vez nos últimos 24 anos. A última vez que a obra saiu do país foi em 1991, para a exposição Circa 1492. Art in the Age of Exploration, na National Gallery de Washington (EUA) – e contra o parecer técnico de alguns especialistas.
Ainda hoje não se sabe como a pintura veio parar a Portugal. Durante muito tempo, pensou-se que teria pertencido ao humanista Damião de Góis, devido a uma referência a um painel de Bosch no seu processo inquisitorial. Mas os mais recentes estudos tendem a descartar essa hipótese. “O Catalogue Raisonné [balanço definitivo das obras do pintor], que vai sair daqui a uma semana, avança com a possibilidade de a pintura ter sido comprada por um príncipe de Nassau, alguém ligado ao imperador [Maximiliano I], por muito bom preço”, revela Joaquim Caetano, curador de pintura do MNAA, que colaborou na feitura do catálogo da exposição do centenário no Prado. “Consegue-se depois seguir o rasto desse tríptico até que se incorpora nas coleções do Duque de Alba [na época em que os Países Baixos estiveram sob domino espanhol]. Que do Duque de Alba tenha passado a Espanha, parece mais provável”. E de Espanha teria vindo finalmente, ainda não se sabe em que circunstâncias, para Portugal.
Uma caixa dupla construída para o efeito e climatizada
Se foi esse o caso, a obra vai agora fazer o trajeto inverso. A sua saída não exigiu cuidados especiais de conservação, uma vez que as tábuas se encontram em excelente estado. Apenas “uma limpeza de superfície, com uma trincha macia e um espanador, pouco mais do que isso”, garantiu a conservadora Susana Campos numa visita da imprensa aos bastidores do museu. Também foi verificado “se o ajuste da moldura à pintura está firme e correto”.
Feito o relatório do seu estado e tomadas todas as precauções, a pintura vai viajar numa “caixa especial construída para o efeito, climatizada, para que não haja alterações nem de humidade nem de temperatura durante todo o transporte”, e dotada de um “sistema de suspensão anti-vibrações”, explica a conservadora. Joaquim Caetano especifica: “Estamos a falar de uma caixa dupla” e é entre as duas caixas que se integram os amortecedores.
Clube restrito
A pintura já seria considerada uma espécie de tesouro quando foi executada por Bosch, cerca de 1500? Tudo aponta para que sim. “As pinturas do Bosch e do grupo do Bosch são feitas para uma clientela muito selecionada de figuras próximas do imperador”, diz Joaquim Caetano. “Há uma espécie de clube restrito”.
No tríptico de Lisboa – que considera, com O Jardim das Delícias, uma das duas obras-primas absolutas do pintor – Caetano chama a atenção para a “inversão da hierarquia normal num tríptico flamengo”. “Quando abrimos o tríptico, em vez do Cristo temos o Santo Antão. E, em vez dos populares que o achincalham, temos os demónios a tentar bater-lhe ou a tentá-lo. A refletografia mostra que no painel central, onde antes foi pintada uma tenda com diabos a fazerem uma dança, ele acaba por desenhar uma espécie de uma gruta onde Cristo aponta para a sua imagem na Cruz, enquanto o santo, no centro do quadro, olha para nós e aponta para esse Cristo”.
Sobre as criaturas monstruosas que têm fascinado gerações de amantes de arte, o curador não tem dúvidas: “O demoníaco não tem de cumprir regras, pode ter uma cabeça de cavalo, uma cauda de peixe, asas de morcego, porque não tem essa necessidade da perfeição que é inerente à criação divina. Nos quadros do Bosch, as boas figuras – Cristo, os santos, a Virgem Maria, Adão e Eva, ou o Santo Antão – são sempre figuras perfeitas, belas, isoladas no meio do distúrbio”.