Morley Safer: um ‘magistral’ contador de histórias

Despediu-se há uma semana  do jornalismo, profissão que teve nele um dos seus heróis, dedicando-lhe 61 dos 84 anos que viveu. Morley Safer só deixou de trabalhar porque o físico já não acompanhava uma cabeça que, segundo os colegas, mantinha a clareza e a sagacidade de sempre. O «icónico correspondente» da CBS, cujo nome se…

Ao longo de quase cinco décadas, assinou um total de 919 reportagens para o programa que asfaltou o terreno para a combinação de notícias e entretenimento na televisão norte-americana. Este híbrido resiste até aos dias de hoje e já com a passagem de testemunho a uma segunda geração de grandes jornalistas que asseguram que este magazine continua a distinguir-se não abdicando dos rigorosos critérios que o tornam um símbolo da importância decisiva do quarto poder no equilíbrio das sociedades.

Integrando a equipa do programa criado por Don Hewitt em 1970, dois anos após o seu início, Safer acabou por superar em longevidade qualquer das outras lendas que fizeram do 60 Minutos  o mais popular e lucrativo programa de notícias da história da televisão – além de Wallace,  Dan Rather, Harry Reasoner, Ed Bradley e Andy Rooney. Fosse no estúdio ou a viajar pelo mundo – e houve anos em que Safer chegou a fazer mais de 300 mil quilómetros como correspondente para o programa –, o seu estilo descontraído contrabalançava o tom mais ríspido de Mike Wallace, outro veterano da CBS que morreu em Abril de 2012  e que era mais conhecido pelo seu faro para os grandes furos e as investigações que levavam a grandes denúncias. Safer fez um pouco de tudo, desde perfis de heróis e vilões internacionais, entrevistas a celebridades e dando atenção a uma série de fenómenos mais leves, servindo-se dos seus largos horizontes para assinar peças elegantes e também provocatórias nas áreas da ciência, cultura e arte, sem deixar de expor inúmeras fraudes e casos de corrupção. 

Era um entrevistador afável e que gostava de usar da moderação, consciente do poder da televisão para explorar emoções. As suas perguntas eram tantas vezes aquelas que se poderiam esperar da pessoa comum se tivesse oportunidade de as fazer.

«Nenhum correspondente teve uma leque tão extraordinário, desde reportagem de guerra a todos os aspetos da cultura moderna», notou o presidente da CBS News, David Rhodes, reagindo à notícia da morte do correspondente, sublinhando o papel que teve no canal, ajudando desde a sua criação e dando orientações para a sua identidade até aos dias de hoje. Já o produtor executivo do 60 Minutos, Jeff Fager, reagiu através do Twitter, e destacou a perda de «um contador de histórias magistral, uma inspiração para muitos de nós e um amigo maravilhoso». 

Para a sua geração, Safer ficou célebre como o melhor dos jornalistas televisivos que cobriram o Vietname. Ele e um punhado de outros repórteres da imprensa escrita não se contentaram com a versão eufemística e censurada da realidade que lhes era transmitida nas conferências de imprensa em Saigão, e aventuraram-se saindo para o terreno com as tropas. Com o seu cameraman vietnamita, Ha Thuc Can, Safer levou aos lares da América uma visão da guerra que estavam longe de imaginar. Filmaram grandes planos dos combates e das operações de busca e destruição, imagens que passavam nos ecrãs de televisão por vezes apenas algumas horas após terem sido capturadas. A dupla aventurava-se num helicóptero que a dada altura foi abatido, mas os dois saíram ilesos e seguiram como dantes.

Em agosto de 1965, foram responsáveis pela reportagem que viria a ser classificada como uma das melhores peças de jornalismo do século XX pela Universidade de Nova Iorque. Safer esteve junto dos soldados que receberam ordens para queimar Cam Ne, outra aldeia que os serviços de informação tinham classificado como um santuário dos vietcong. Embora as tropas inimigas já ali não estivessem quando lá chegaram os marines, assim mesmo e sem qualquer resistência, estes dispararam rockets e metralhadoras na direção da aldeia, e depois usaram lança-chamas e, granadas e isqueiros para puxar fogo às palhotas, com velhotes e mulheres, algumas mães com crianças de colo, a implorarem-lhes que não o fizessem. «Os Vietcong  desapareceram há muito. A operação feriu três mulheres, matou um bebé, feriu um marine e levou à detenção de quatro velhos. A operação de hoje é uma miniatura da frustrada guerra do Vietname», clamou o jornalista, adiantando que «para um camponês vietnamita cuja casa significa uma vida de trabalho árduo, vai ser preciso mais do que promessas presidenciais para convencê-lo de que estamos do seu lado».

Foi um dos retratos da guerra com maior difusão e marcaram decisivamente a ideia que os americanos passaram a ter do que andavam as suas tropas a fazer do outro lado do globo, no combate à ameaça comunista. A reportagem provocou uma explosão de raiva do então presidente Lyndon B. Johnson, que numa chamada à meia-noite para o chefe da CBS, Frank Stanton, o chamou de tudo, e depois ordenou que Safer fosse alvo de uma investigação como possível comunista. Safer foi inocentado.

Nascido em Toronto, Canadá, em novembro de 1931, Safer tinha dupla nacionalidade. Em 1968, casou com Jane Fearer, uma antropóloga e autora de vários livros. Além da mulher, sobrevivem-lhe a filha, Sarah Safer, um irmão e irmã, e três netos.