Surpresa? Não: todos os sistemas políticos (ao contrário do que propugna uma maioria considerável dos nossos cientistas políticos) vivem do conflito, do dissenso e da busca da posição dominante. Afinal de contas, não é essa a lógica do princípio da separação de poderes: evitar a concentração (excessiva e perene) dos poderes do Estado num só órgão, numa só personalidade, num só “príncipe”?
Ainda para mais, o semipresidencialismo português evoluiu no sentido de um presidencialismo paralelo: i) um presidencialismo de Primeiro-Ministro, dada a sua primazia como líder do Governo, condicionando a vontade de todos os seus Ministros e demais membros do Governo e anestesiando o partido de que é líder; ii) um presidencialismo em sentido estrito ou “presidencialismo de Presidente”, em que o Presidente da República é dotado de uma legitimidade eleitoral qualificada, sendo uma personalidade que se impõe aos partidos e os condiciona.
Os tempos de crise, historicamente, sempre tenderam à personalização do poder político, mesmo que em democracia: os tempos de crise austeritária em Portugal fizeram crescer o anseio dos portugueses por uma figura popular, real ou aparentemente fora dos partidos políticos, que falasse directamente com os portugueses. Sem agendas ocultas, sem obrigações de fretes partidários, sem silêncios ensurdecedores.
Pois bem, a geringonça aparentemente veio quebrar esta linha de continuidade na evolução do sistema político português – isto porque a necessidade de articulação permanente entre os partidos que compõem a geringonça levaria a colocar o Parlamento no centro da discussão política, fragilizando a posição política e constitucional do Governo. Se seria assim na teoria, a prática tem-se revelado diversa. Porquê? Porque o centro de decisão política não é o Governo, não é o PS – é António Costa. Ponto final.
Muito curioso: se é verdade que o Governo perdeu força e poder de decisão para o Parlamento, a verdade é que se reforçou o papel e o estatuto do Primeiro-Ministro, que é líder do PS. Antes de se discutir no Parlamento, já António Costa decidira tudo com Jerónimo de Sousa e Catarina Martins. Há aqui a emergência de uma verdadeira (perigosa e disfuncional?) “Constituição não-oficial” (recorrendo à expressão do Professor Paulo Otero), na qual o Parlamento é apagado, não em prol do Governo como órgão colegial, mas do Primeiro-Ministro e dos directórios partidários. Parece-nos evidente que há em Portugal, hoje, menos democracia do que havia há quatro, cinco anos.
E Marcelo Rebelo de Sousa percebe melhor do que ninguém a conjuntura política em que vivemos. Rebelo de Sousa sabe que já não é o PS, nem o PCP, nem o BE que baralham e voltam a dar as cartas na política portuguesa – é António Costa. Que, passo a passo, está a montar uma máquina de poder (envolvendo comunicação social, estruturas do Estado, administração pública…) que tornará muito difícil derrotá-lo nas urnas ou na secretaria (sim, porque este Governo resulta de um acordo entre os líderes partidários da extrema-esquerda e do extremo-PS que começou a ser negociado antes das eleições…). Daí que Marcelo tenha que disputar o palco mediático e político com António Costa – apagando-se até aquela ideia de Marcelo reunir individualmente com os Ministros de cada sector…
Não tenhamos dúvidas: António Costa foi muito útil para a vitória de Marcelo nas presidenciais. Se António Costa não tivesse formado a geringonça e Passos Coelho tivesse permanecido no Governo – muito provavelmente Marcelo Rebelo de Sousa não teria sido candidato. Aí entraria – como nós então escrevemos aqui no SOL – Pedro Santana Lopes, o candidato preferido de Passos Coelho e apoiado na estrutura por Marco António Costa. Marcelo deve, portanto, agradecer a Costa a sua eleição esmagadora.
No entanto, o problema é que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa partilham os mesmos defeitos. Em termos de qualidades, Marcelo é claramente superior a Costa – intelectualmente, politicamente, em questões de qualidades humanas. Mas partilham os defeitos: a mesma aversão à lealdade, trocando os valores e/ou ideologia pela premência dos fins; a capacidade de mudar de opinião em poucas horas (ou minutos);a concepção maquiavélica e um pouco maniqueísta da política, o desejo de popularidade e protagonismo; a visão da política como um fim e não como um meio.
Marcello Caetano conta nas suas memórias sobre Salazar que este lhe terá dito um dia: “ por trás de um grande nunca pode estar um grande”. Isto a propósito do cenário aventado na década de 50 (pelo próprio Marcelo Caetano e alimentado pelo grupo que virá a constituir o Grupo da Choupana) de passar Oliveira Salazar para Presidente da República e Marcello Caetano assumir o lugar de Presidente do Conselho.
O drama de António Costa é o mesmo de Oliveira Salazar – por trás dele (que se considera, dado o seu ego ilimitado, não um ser grande, mas um ser enorme) está outro grande que é Rebelo de Sousa. E que , na actual conjuntura, é maior, em popularidade e inteligência táctica, que o próprio Costa.
Por conseguinte, hoje vivemos numa clara fase presidencialista do nosso sistema de Governo: Marcelo Rebelo de Sousa é o sujeito político mais forte e condicionante da actuação de todos os demais actores políticos. Mexe com o PSD, mexe com o PS, mexe com António Costa e fala directamente ao Parlamento. Rebelo de Sousa nunca escondeu que queria ser um Presidente interventivo e com poder – António Costa tornou possível esta ambição, que parecia tão inverosímil há oito meses, de Marcelo.
Prolongar António Costa no poder significa, para Marcelo, prolongar o seu poder pessoal e o seu lugar central no sistema político. Marcelo, ao contrário de Cavaco Silva e de Jorge Sampaio, não sabe viver longe dos holofotes e das atenções mediáticas. O Presidente Marcelo não conseguirá viver (e sobreviver) como uma personagem política secundária ou acessória.
A geringonça – ao desestabilizar e enfraquecer os dois órgãos de soberania restantes, o Parlamento e o Governo – concedeu a oportunidade única a Marcelo de ser o “one Presidente show”. António Costa é, por isso, a vaca voadora de Marcelo: tornou um facto político quase impossível num cenário político real.
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