Está em funções há quatro meses, antes era porta-voz dos administradores hospitalares. O SNS está pior do que imaginava?
A situação é francamente preocupante. Há uma grande desestruturação das respostas e da forma de trabalhar. Nos últimos anos tivemos uma crescente centralização e perda de autonomia que agora é mais difícil de reverter do que repor salários. O que mais me surpreendeu foi a fórmula que muitas instituições encontraram para resolver as suas dificuldades, que é dizer: ‘Já reportei’. Seja falta de recursos humanos, falta de dinheiro, falta de gente para escalas.
Deviam resolver os problemas sem esperar por autorização?
Eu sei que isso atira para os ombros dos gestores uma responsabilidade pesada, mas não vejo alternativa. Estando em causa valores de integridade física e de vida, têm de prevalecer sobre os valores procedimentais.
Os gestores deviam violar mais vezes os procedimentos?
Ser gestor também é correr riscos, e sei que muitos correm, mas nos últimos tempos tendemos para uma mentalidade muito dependente da tutela e, ao mesmo tempo, há um grande controlo e até ingerência por parte da tutela sobre a vida das instituições.
Como se concilia a sua ideia de que é preciso devolver autonomia aos hospitais com o projeto de resolução aprovado no parlamento para que os hospitais regressem ao setor público administrativo?
Acho que há erros de interpretação no debate. Não posso dizer que uma PPP é um mau modelo porque foi usado abusivamente noutros setores e mesmo na saúde. Não podemos confundir os modelos com desvirtuamentos e erros. Penso que ninguém com historial de administração de serviços de saúde pode rever-se nesta proposta se ela significar rigidificar ainda mais as estruturas.
É essa a visão do ministério?
Acho que há disponibilidade para avaliar o que correu mal nas EPE e PPP. Mas creio que é um caminho muito longo para ser posto em causa. Não é possível regredir 40 anos e ir contra aquilo que tem sido a evolução da teoria da administração hospitalar, que aponta para a flexibilização da gestão com responsabilidade. Quando perguntava há pouco o que me surpreendeu: tinha noção das dificuldades financeiras mas não tinha noção de que a quebra da autonomia tivesse feito tanta mossa e tivesse deixado marcas tão profundas na forma como nos relacionamos.
E está a prejudicar os doentes?
Em última instância, está, mesmo que não seja diretamente.
No Barreiro-Montijo, uma falha afetou diretamente doentes que não fizeram quimioterapia a tempo.
Não sei o que se passou. Temos de investigar para evitar que volte a acontecer.
Em março, o diretor do serviço, Jorge Espírito Santo, apresentou a demissão e foram tornadas públicas preocupações com os doentes. O ministério da saúde falou com ele?
Não tenho essa informação. Mas isso leva-nos outra a vez à questão da responsabilidade de cada um. A tutela não pode estar a ingerir-se na vida das instituições.
Mas pode ignorar sinais de alarme?
Não pode. Mas para mim não há nada mais demonstrador de quanto todo o sistema está inquinado e desestruturado que ter estruturas de administração, intermédias ou mesmo da tutela que decidem a reboque de demissões. É algo que repudio totalmente.
Em Santarém, só com demissões de chefes de serviço houve promessa que as verbas serão desbloqueadas.
Não houve promessa. Repondo a verdade: o pedido de investimento tem duas fases, uma de instalação provisória de blocos operatórios e outra das obras em si. A instalação provisória foi autorizada pelo anterior executivo e está a decorrer. A fase subsequente, da obra definitiva, deu entrada na ACSS a 28 de janeiro. Quando não há verbas, e não há, as decisões têm de ser ponderadas. Têm a expectativa de fundos comunitários, mas é uma expectativa.
Não podia ter vindo mais dinheiro para a saúde este ano?
Podia, se houvesse. A saúde tem uma percentagem da despesa pública inferior ao que é recomendado. O problema é que temos de fazer escolhas. Temos uma Segurança Social que consome muitos recursos. Vamos emagrecer a educação, a cultura, a justiça? Então, temos de olhar para onde há margem e a saúde tem de contribuir como os outros. Não estamos como gostaríamos mas o SNS tem provas dadas. Os casos são casos.
São mesmo? Parece que só se percebe a gravidade das carências quando há um caso extremo.
As histórias boas aparecem menos. Sim, há desorganização. Mas o grande esforço de sustentabilidade no SNS não é dar-lhe dinheiro, é organizá-lo melhor.
Neste caso do Barreiro, vai haver algum levantamento para ver se há mais doentes na mesma situação?
Há vários levantamentos em curso. Nestas situações críticas, naturalmente, mas também nos tempos de espera excessivos.
O que vai acontecer a um hospital com tempo de espera elevado?
Vai ser preciso perceber se é por desorganização, falta de recursos ou se a oferta tem de ser melhor direcionada. Não faz sentido haver hospitais sobrecarregados e outros ao lado vazios. Veja-se em Lisboa. O Amadora-Sintra tem uma situação crítica e Lisboa Norte tem perdido população. Estamos a pôr os doentes a circular.
Confia no SNS?
Confio. Nunca precisei de assistência crítica, mas os meus familiares foram sempre assistidos no SNS. De facto, houve duas situações recentes em que os meus pais foram ambos operados no privado porque eram beneficiários da ADSE. Foi uma opção expressa por causa dos tempos de espera.
Quanto tinham de esperar?
Um ano. Ninguém que tenha 60 anos e esteja ativo está disponível para ficar com dores à espera de uma prótese da anca. Temos uma população envelhecida e as pessoas que podem vão à procura de soluções alternativas, por muito que prezem o SNS. Se queremos um SNS forte, não pode ser o que sobra para quem não consegue escolher. O que me choca é como é que o SNS chegou a este ponto nos tempos de espera mas também falhas nas condições de apoio.
Por exemplo?
Comodidades que encontramos quando vamos a um convencionado ou privado e que temos perdido no SNS. Estacionamento, sala de espera, simpatia, conforto mínimo. A grande vantagem de pôr os doentes a circular pelo país é que os hospitais vão começar a competir e é importante que percebam que a forma de arranjar verbas para se manterem é a produção, sendo que nunca poderemos pagar toda a produção de alguns hospitais porque a outros temos de pagar coisas que não fazem para os manter abertos, por questões sociais. Na prestação de cuidados acho que o SNS continua a assegurar resposta. Embora haja casos, mais vezes do que gostaríamos e também porque não falamos mais uns com os outros. Porque há sinais de alerta.
Por isso perguntei se tinham ligado a Jorge Espírito Santo?
Eu não liguei, espero que alguém tenha ligado.
Já se chateou com algum amigo administrador?
Em lugares de liderança não se pode esperar que as pessoas fiquem todas amigas. E, sim, já tive de me chatear com pessoas que estimo e considero bons gestores.
E o ministro? Marcelo adora-o mas há quem diga que não tem operado uma verdadeira reforma no setor.
Eu acho que nunca aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo. Teremos agora o tempo para passar as áreas mais estratégicas, porque aquilo que eram compromissos do governo estão a ser respondidos. A saúde oral nos cuidados primários está a avançar, baixou-se as taxas moderadoras, vai arrancar o rastreio visual, arrancou o livre acesso. A estratégia de quatro anos é muito mais que estas coisas e compreendo que haja perceção de serem medidas pontuais. Mas correm sobre uma estratégia. O trabalho que está a ser feito pela comissão de reforma dos cuidados primários é extraordinário: sei exatamente onde colocar os médicos de família que se formaram agora. É triste, mas até aqui não sabíamos.
Disse que os gestores correm riscos. Qual é a sua linha vermelha?
Nunca violar a minha consciência.
O que a faria dizer ‘não assumo’?
Que a autonomia dos hospitais tivesse uma reversão drástica.
Vai bater-se contra a resolução? Pergunto a título pessoal e não enquanto porta-voz do ministério.
Essa linha é claramente inaceitável.