Afinal, Marcelo vai mesmo demitir António Costa?

1. A resposta poderá já ser avançada em termos simplistas: Marcelo Rebelo de Sousa pretende salvar António Costa – matando a geringonça. Parecerá tal conclusão contraditória? Admitimos que sim – contudo, essa contradição é meramente aparente. 

2. Já aqui escrevemos que o intuito político do Presidente Marcelo foi, é e será a constituição de um Bloco Central, isto é, um Governo formado por PS moderado, ao centro – e por um PSD, moderado e ao centro. Bloco Central, esse, protagonizado por dois líderes políticos da confiança de Marcelo – o que implica manter António Costa como líder do PS e arranjar um líder para o PSD que cultive uma relação cordial (e talvez amistosa) com Costa, que seja próximo (ou não distante) de Marcelo – e, simultaneamente, não seja politicamente (tão?) forte que lhe (a ele, Marcelo Rebelo de Sousa) faça sombra. 

2.1. A fórmula divina de Marcelo é, pois, Governo de Bloco Central = PS de António Costa + PSD de Rui Rio ou José Eduardo Martins. Para o conseguir, Marcelo sabe – recorrendo à sua veia de sagaz analista político e comentador televisivo, especialista nato na ocupação do espaço mediático – que só terá uma oportunidade no seu mandato: no rescaldo das eleições autárquicas de 2017. Porquê? Ora vejamos. 

3. Primeiro ponto que devemos reter: Marcelo Rebelo de Sousa, como comentador, defendeu ao longo de décadas que é um erro político primário confundir os resultados das eleições autárquicas com a avaliação que os portugueses fazem da actuação do Governo da Nação. Clarificando: no pensamento (constante ao longo de anos, anos e anos, desde o EXPRESSO até à RTP, passando pela TVI), Marcelo Rebelo de Sousa sempre se recusou (instando os líderes políticos a seguir o seu exemplo) a extrair ilações nacionais do veredicto popular expresso em eleições locais. 

3.1. Uma coisa é o juízo que os portugueses fazem da actuação do Governo e da oposição a nível nacional; outra, bem diferente e independente, é o juízo que fazem dos dirigentes políticos locais. Por conseguinte, um militante e simpatizante do PSD ou do CDS pode perfeitamente votar em candidatos do PS ou mesmo do PCP – basta que o seu trabalho em prol das comunidades locais tenha sido exemplar e útil. 

3.2. Ora, porque razão Marcelo Rebelo de Sousa, agora eleito Presidente da República, actor político principal e não comentador, passaria a defender exactamente o contrário do que tem defendido toda a sua vida? Estará Marcelo Rebelo de Sousa-Presidente contra o Marcelo Rebelo de Sousa –comentador e cidadão? Não nos parece. Marcelo pode ter alguns defeitos, mas tem uma virtude: é coerente em matéria de princípios (o que não se confunde com coerência ideológica, de posições avulsas ou programáticas). Marcelo é um homem de palavra e de honra face aos compromissos assumidos. 

3.3. Donde, Marcelo Rebelo de Sousa não se equivocou, não se enganou, nem (tão pouco!) se contradisse ao declarar que, após as autárquicas, Portugal iniciará um novo ciclo político. O que é uma evidência. Ora, um político dizer evidências é de aplaudir – e não motivo de crítica. Entendamo-nos: dizer que se iniciará um novo ciclo político após as autárquicas é algo diferente de se dizer que o prazo da geringonça acaba em 2017, em consequência do resultado das eleições autárquicas. No primeiro caso, é uma declaração objectiva, quase imune à discordância pluralista; no segundo caso, trata-se de um juízo subjectivo do Presidente da República que imporia a sua vontade ao Governo e à Assembleia da República, numa manifestação típica da dimensão presidencial do nosso sistema político. 

4.Marcelo ficou-se pelo primeiro caminho: a de constatar que, após Outubro de 2017, teremos um novo ciclo político, cujo desfecho é imprevisível: poderá redundar num reforço da geringonça (o que é improvável); na mudança de liderança no PSD; no enfraquecimento do CDS, perdendo Assunção Cristas o seu elã inicial ou no enfraquecimento do PS, embora à custa do fortalecimento de Costa (pense-se no caso de o PS aceitar  formar coligações em vários pontos do país, que reforçam o Bloco de Esquerda e o líder da geringonça, embora sejam negativas, em termos de representatividade, para o PS). De facto, algo irá mudar após as autárquicas. Marcelo Rebelo de Sousa tem toda a razão. 

5. Uma leitura mais precipitada diria mesmo que este comentário de Marcelo foi o sinal de que o Presidente não cede à tentação de voltar ao comentário político de quando em vez. É verdade que a constatação de que após as autárquicas se iniciará um novo ciclo político revela a lucidez do comentador Marcelo – todavia, são mais do que isso. Revela que Marcelo Rebelo de Sousa sabe ser também um jogador político nato. Como? Fácil: Marcelo criou um facto político que lhe será benéfico a prazo. 

5.1.Explicamos melhor: qual a intenção de Marcelo em proferir tal declaração neste momento? Foram três os objectivos do Presidente:

i)    Antecipar os (ainda eventuais) problemas políticos que se poderão seguir às autárquicas. Com efeito, Marcelo sabe que uma derrota do PS ou um resultado desastroso para o PCP poderá significar o fim da “Lua de mel” entre as esquerdas extremas. Mesmo mantendo o apoio do BE, o Governo de António Costa cairá no dia em que os comunistas perceberem que o seu espaço vital está em franca regressão. Além disso, o objectivo do PCP em apoiar a geringonça passou pelo reforço dos seus sindicatos, sobretudo no sector dos transportes. E as consequências estão à vista: a greve dos estivadores causou danos demasiado avultados à economia portuguesa, podendo até colocar em perigo vidas dos nossos compatriotas das regiões autónomas. Por isso, o PS não poderá aguentar por muito mais tempo o reforço progressivo das estruturas sindicais do PCP – o PS terá de resistir e deixar cair o apoio dos comunistas. Ou se salva Portugal, ou se salva o PS; 

ii)    Marcelo Rebelo de Sousa está convicto de que a aprovação do Orçamento de Estado para 2017 é certa, ainda que PCP e BE façam algum teatro político para não desagradar às suas bases. O problema (real e profundo) ocorrerá aquando da aprovação do Orçamento para 2018. A discussão e aprovação deste Orçamento sucederão precisamente em Outubro de 2017 – ou seja, no rescaldo das autárquicas. O PCP e o Bloco agirão de acordo com os resultados eleitorais que aí obtiverem; 

iii)    Por último, importa ver que esta declaração de Marcelo Rebelo de Sousa insere-se numa outra em que o Presidente apelava à estabilidade dos mercados, criticando a instabilidade criada por analistas, comentadores e agências. Ora, recorrendo ao elemento sistemático de interpretação, temos que Marcelo Rebelo de Sousa, ao marcar a avaliação da geringonça e da oposição para Outubro de 2017, quer sinalizar aos mercados que nada é definitivo: mesmo que suspeitem da evolução da situação política portuguesa e possam recear um Governo ancorado no PCP e no BE, não vale a pena criar um problema financeiro neste momento. Para o ano, tudo poderá ser diferente. No fundo, Marcelo está a dizer aos mercados que a geringonça é transitória. Não se compreende, pois, que António Costa tenha mandado Porfírio Silva reagir tão violentamente à frase de Marcelo: o Presidente da República está a fazer um favor a António Costa…a livrá-lo da asfixia do PCP e do BE…

6. Tudo dito e revisto, Marcelo Rebelo de Sousa- ainda que de forma atabalhoada – criou um facto político inteligentemente. Ser-lhe-á muito útil em 2017: aí, Marcelo poderá “lavar as mãos como Pilatos”, que é dizer, poderá alegar que a crise política não é da sua responsabilidade; ele até alertou para a sua ocorrência logo em Maio de 2016…A culpa será sempre de António Costa, de Jerónimo de Sousa ou de Catarina Martins. Ou até de Passos Coelho…Nunca de Marcelo Rebelo de Sousa. 

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