Uma auditoria interna feita há cerca de dois anos nas ‘secretas’ portuguesas permitiu perceber que havia quebras de sigilo e que determinados dados sensíveis – sobretudo relacionados com a NATO – estavam a chegar às mãos erradas. As suspeitas rapidamente recaíram sobre Frederico Carvalhão Gil, o agente dos Serviços de Informações de Segurança (SIS) detido em Roma há uma semana. A partir desse momento, e sem que o ‘espião’ se apercebesse, todos os documentos sensíveis foram afastados do principal suspeito, para proteger os interesses nacionais e da NATO. Mas o caso ameaça escalar para um incidente diplomático, com Portugal obrigado a tomar uma posição em relaçãoà Rússia.
A Polícia Judiciária (PJ)espera que nas próximas duas semanas haja uma decisão sobre o pedido de extradição às autoridades italianas e que tanto Carvalhão Gil como o agente russo – detido na mesma ocasião – sejam entregues a Portugal. As autoridades italianas têm cerca de dois meses para emitir uma decisão definitiva, mas, segundo fonte ligada ao processo, a análise do pedido estará avançada. Nesta fase, só as defesas dos dois agentes poderão atrasar a extradição – tudo dependente dos recursos que venham a interpor.
Caso o as autoridades italianas validem o pedido de extradição, a chegada a Portugal do agente russo é vista como uma altura indicada para que o Governo tome posição. «Se um cidadão russo, atuando em nome de um departamento de informações do seu país, comprovadamente tiver comprado documentos classificados a um agente do Estado português, não podemos assobiar para o lado», refere ao SOL um antigo alto responsável político.
Operação de contraespionagem
Aparentemente, tudo continuava igual ao que existia antes da auditoria. O secretário-geral do Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP), Júlio Pereira, participou à Procuradoria-Geral da República a existência de um ponto fraco na sua instituição, mas, de forma intencional, a cúpula das ‘secretas’ manteve as aparências e deu indicações internas para que não se levantassem ondas. Carvalhão Gil ficou, logo desde esse momento, sob o olhar mais atento dos responsáveis do SIRP.
A operação era sensível – uma das maiores preocupações dos serviços secretos é garantir que não há quebras internas na estrutura – e os primeiros-ministros em funções durante o tempo em que durou a investigação (primeiro PassosCoelho e agora AntónioCosta) estiveram sempre a par dos desenvolvimentos. Costa destacou, esta semana, a «excelente capacidade das autoridades judiciárias portuguesas de cooperarem com o SIS e de prosseguirem uma investigação criminal ao longo de meses, ou anos, e de uma forma exemplar».
A detenção do ‘espião’ português, em Roma, juntamente com o agente dos serviços secretos russos a quem alegadamente vendia informação, suscitou preocupações aos mais altos níveis: a que documentos teria o ‘espião’ de Vladimir Putin tido acesso? Fonte ligada à investigação garante aoSOL que essa questão foi rapidamente tratada, pelo menos internamente: nenhuma da documentação mais importante era passada a Carvalhão Gil.
No entanto, essa ação preventiva não garante que as matérias classificadas com nível de segurança mais elevado não tenham chegado às suas mãos.
Fonte ligada aos serviços de informações refere que, mesmo depois de uma reprimenda e despromoção por violação dos deveres profissionais, em 2000, Carvalhão Gil manteve boas relações com os colegas de décadas nos serviços. E, mesmo desconhecendo o fim a que se destinavam os pedidos do agente, esses contactos privilegiados na estrutura poderão ter-lhe feito chegar matérias que os responsáveis do SIRP queriam manter distantes do suspeito.
O ‘espião’ marxista que costumava visitar o Leste
Carvalhão Gil nunca escondeu a sua orientação política. Uma fonte que pede para não ser identificada e conhece o agente desde a sua entrada nos serviços, logo na fundação doSIS, em meados dos anos 80, recorda ao SOL que foi sempre claro quanto à sua visão marxista do mundo.
Essa proximidade com o património histórico e ideológico da antiga União Soviética levava-o, com frequência, em viagens até ao Lesta da Europa – documentadas, inclusive com fotografias, na sua página no Facebook. Ao mesmo tempo, a sua companheira atual é natural da Geórgia. A despromoção de CarvalhãoGil terá, de resto, acontecido na sequência de um episódio em que a mulher esteve envolvida.
O agente assumia as funções de chefe de área quando, no final da década de 90, viajou com um grupo de formandos do SIS até Israel. Objetivo: conhecer por dentro a Mossad. Só que o responsável terá optado por prestar mais atenção à mulher que aos seus formandos.
No regresso, foi despromovido por Rui Pereira, então ministro da Administração Interna e, à data, a tutela do SIS. O agente foi afastado das matérias mais relevantes com que até aí podia lidar.
Um dia de férias para ir vender informação a Roma
Há meses que Carvalhão Gil era seguido em Portugal. A viagem para Roma, na semana passada, obrigou a uma operação relâmpago, mas cheia de obstáculos.
O treino de um agente secreto é altamente especializado e as conversas ao telefone, por exemplo, seguem determinadas regras – uma cautela que levou a que, através das escutas, não fosse possível perceber as marcações de encontros com o contacto russo.
Nas operações de vigilância, as equipas da PJ que lhe seguiam os passos estavam em permanente rotação, para que o agente nunca desconfiasse de que estava a ser investigado. No final da semana passada, a última fase de investigação foi desencadeada. Carvalhão Gil tinha pedido um dia de férias noSIS e a equipa de investigação percebeu que ele se preparava para viajar. Por isso, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (onde decorre o inquérito, designado como Top Secret) emitiu de imediato os mandados de captura e as cartas rogatórias.
Os mandados ficaram em suspenso até o destino ficar claro – algo que só aconteceu na quinta-feira à noite (26 de maio), véspera de Carvalhão Gil viajar. Foi através das listas de passageiros das companhias aéreas que a investigação descobriu que o agente seguiria para Roma. De imediato, as autoridades italianas foram contactadas e os passos finais da operação começaram a ser dados.
Para Itália, e ainda antes de Carvalhão Gil, viajaram também inspetores da PJ, que acompanharam as autoridades italianas nas últimas horas da missão. O ‘espião’ ficou num hotel barato da capital. A PJsabia que, emRoma, havia um ponto de contacto russo com o português – conheciam-lhe a cara, de fotografias que já tinham analisado anteriormente, mas não sabiam que o encontro seria com esse agente russo.
Assim que perceberam que os dois agentes estavam juntos na cidade, as autoridades inseriram os dados no sistema e a Polícia italiana e o Eurojust avançaram para a detenção, que ocorreria no sábado.
Depois de os dois agentes terem sido detidos, os quartos em que estes estavam hospedado foram revistado, tendo sido apreendidos documentos comprometedores que servirão para provar os crimes de que o agente português é suspeito: espionagem, violação de segredo de Estado, corrupção e branqueamento. Também a casa onde vive com a mãe, em Lisboa, foi alvo de buscas. Todos os documentos apreendidos foram lacrados pelos inspetores.
Tudo aponta para a prática do crime de espionagem. Segundo fonte ligada à Unidade Nacional de Contra Terrorismo da PJ – responsável pela investigação –, neste momento os inspetores acreditam ter reunido provas suficientes que mostram que o agente do SIS vendia informações classificadas a agentes do ex-KGB. Segundo o jornal Público avançou esta semana, cada informação passada aos russos corresponderia a um pagamento de 10 mil euros.
Ao i, fonte ligada às questões de segurança admitia esta semana que Carvalhão Gil pudesse ter feito o mesmo negócio outras vezes. Na verdade, falava-se até na existência de uma «conta-corrente» onde seriam entregues as verbas.