José-Augusto França: ‘A minha ligação à arte é quase respiratória’

        

Nascido em Tomar em 1922, José-Augusto França é o maior historiador da arte português, autor de obras de referência como Lisboa Pombalina e o Iluminismo ou A Arte em Portugal no Século XIX. Casado com uma francesa, vive numa aldeia situada a 300 km de Paris e onde não há mais nenhum estrangeiro. Não tem computador nem telemóvel, usa uma máquina de escrever e o carteiro entrega-lhe a correspondência à janela, por especial deferência. Em breve vai publicar um livro sobre Picasso, pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Na capital francesa, privou com intelectuais portugueses ali exilados, como António José Saraiva e Joaquim Barradas de Carvalho, e conheceu figuras como Roland Barthes, o poeta André Breton (com quem teve um desaguisado), Daniel Cohn-Bendit, o líder do movimento estudantil do Maio de 68, e o galerista Daniel-Henry Kahnweiler, que lhe contava histórias sobre Picasso.

O SOL entrevistou-o numa passagem por Lisboa, na esplanada do Jardim da Estrela, onde passou muitas manhãs, mesmo no inverno, a ler, a escrever ou a receber amigos. Diz que os cigarros deixaram de lhe saber bem, mas quando lhe perguntamos há quanto tempo deixou de fumar responde, com humor: ‘Há meia hora. Fumei um cigarro sentimental por causa desta envolvência’.

Trouxe consigo a revista Obs. Lê muita imprensa estrangeira?

Só leio imprensa estrangeira. Sou assinante do Monde sei lá há quantos anos. E lembro-me do lançamento do Nouvel Observateur nos anos 50 ou 60, de que também tenho a assinatura. Como vivo numa aldeia, longe de Paris, é mais prático assim. Ah – e todos os sábados compro o Figaro, para ver ‘o outro lado’. Estão cada vez mais reacionários, mas é divertido lê-los. A imprensa inglesa ou americana só por acaso a vejo: a cultura francesa está nos meus hábitos há 80 anos.

Não vê nada na internet?

Não, não tenho internet. Deram-me um computador, eu agradeci, mas está desligado. Não lhe mexo.

E como escreve? À mão?

À máquina. Comecei a escrever com uma máquina que o meu pai me deu quando tinha dez ou onze anos. Escrevo mal, só com dois dedos. Raramente escrevo à mão, se faço um esboço à mão é para não me esquecer de coisas, a redação é à máquina.

A máquina tem o problema de quando nos enganamos não dá para corrigir…

Dá. Risca-se, escreve-se por cima. Os manuscritos que eu entrego aos meus editores têm cortes e acrescentos por cima e por baixo e dos lados; às vezes ficam muito bonitos, com um grafismo involuntário. E quando tenho vergonha ou pena do pobre do compositor, passo a limpo. Antigamente o tipógrafo tinha que se haver com os manuscritos do Eça de Queiroz, que eram ilegíveis! Que diabo, o tipógrafo tem obrigação de saber ler…

Há um texto do Paul Auster que se chama História da Minha Máquina de Escrever. A sua máquina de escrever tem alguma história?

Durante muitos anos usei uma Olivetti Valentine, era muito bonita e muito prática e depois escangalhou-se uma mecânica qualquer e comprei outra. Ainda a tenho em França e a mais duas máquinas. Agora o diabo é arranjar fitas. Em França, mesmo as casas mais bem apetrechadas já não têm. Quase defronte da Papelaria da Moda, em Lisboa, entrando por uma loja de vão de escada, sobe-se e no 1.º andar é um dédalo de escritórios. Há muitas coisas dessas na Baixa, perfeitamente século XIX, uns cubículos balzaquianos. E uma velhinha tem lá um estaminé cheio de todas as fitas de máquina de escrever. Tenho de lá ir agora mais uma vez.

Como é a aldeia onde vive?

Eu sou considerado um original, porque sou o único estrangeiro que há ali – embora a minha mulher tenha lá nascido. Sabem mais ou menos quem sou por causa da internet, veja lá! É uma aldeia onde não há um negro nem um norte-africano. O quadro local é, tradicionalmente, de direita.

E a sua casa?

É uma quinta junto à aldeia. Quinta é como se diz em português, que lá, etimologicamente, não faz qualquer sentido. É uma propriété de três hectares, com uma casa grande. Foi o avô da minha mulher que a fez, nos finais do século XIX, e ela é hoje a proprietária. Atualmente é incómodo porque somos só dois – eu tenho 90 anos, e ela 80. Estamos bem acomodados, mas os outros quartos estão todos vazios. Tem um parque bonito, um pequeno bosque e um pavilhão dos finais do século XVIII, que deu nome à propriedade. E, é claro, tem uma excelente biblioteca, que vem da família, e a que acrescentei os meus livros portugueses. Só de Voltaire são 98 volumes do século XVIII.

Estão sozinhos?

Estamos isolados. Não há ninguém para conversa – havia o farmacêutico, o médico, que são pessoas amigas, mas é uma conversa relativa. E a aristocracia do sítio, que está ligada à família da minha mulher, só se interessa pelo bridge. De vez em quando convidam-nos para um almoço, um jantar ou um casamento. Há três ou quatro anos, quiseram vir a Lisboa, recebi-os muito bem, dei-lhes um jantar no Grémio Literário, ficaram encantados com Lisboa, tudo em boa educação burguesa – mas não estou para mais comunicações. O telefone toca à noite, de amigos de Lisboa, e basta-me.

E como é a sua vida na aldeia?

Estou levantado e pronto de pequeno-almoço por volta das dez, dez e meia, vou para a biblioteca, fico à espera do correio que chega pela janela – estou no rés-do-chão e o carteiro traz-me as cartas à janela, por consideração especial. De manhã escrevo, leio, anoto coisas – televisão não, de manhã jamais! -, oiço música, evidentemente, e passeio, quando está bom tempo.

Pela propriedade ou fora?

Dentro da propriedade. O perímetro é um quilómetro exato. Procuro andar um quilómetro de manhã. Uma vez por semana vou à aldeia comprar o Figaro. E depois, o resto do dia, vejo programas de televisão sobretudo do Maigret, do Simenon. É simplesmente genial!

E ele escrevia aquilo às vezes num dia ou dois.

Metia-se na casa de banho e escrevia. Depois ia passear. São romances extraordinários. Eu tenho a sua obra completa, centenas de romances, e são coisas notáveis. De resto o [André] Gide, que foi quem o lançou na Gallimard, tinha grande consideração por ele. E leio, leio, leio muito.

E além de ler?

A seguir ao almoço passam na televisão dois Maigrets, um a seguir ao outro. Quando não há Maigrets, há o Poirot e o Barnaby, que também é bom. Depois só vejo televisão à noite.

O quê?

Vejo dois filmes, um atrás do outro, conforme os programas.

Todos os dias?

Praticamente. A televisão em França é extraordinária. Todos os dias tenho por antena parabólica 30 filmes para escolher, e revejo muitas coisas. Eu fui muito cinéfilo. Comecei a fazer crítica de cinema em 1940, num jornal chamado O Diabo, que não é o mesmo de hoje. Foi lá que me estreei, porque o Piteira Santos, que o dirigia, foi meu colega na Faculdade de Letras. Mas estava a perguntar-me o que faço… Deito-me por volta da meia-noite e meia hora e fico a ler até às duas da manhã na cama. Enfim, é uma vida pacata, como vê, nonagenariamente pautada.

Sai da aldeia para ir a Paris?

A Paris já não vou, fatiga-me. Fui a última vez no ano passado. Tenho 70 anos de prática parisiense, fui sempre um andarilho e descia os Champs Elysées até ao Quartier Latin perfeitamente à vontade, e agora inquieta-me não poder fazer o que fazia – nos museus, galerias, cafés, cinemas e teatros.

O que tem escrito ultimamente?

A última coisa foi um livrinho da coleção ‘Essencial’, da Imprensa Nacional. Fiz livros para lá em tempos e no ano passado convidaram-me para fazer um livro sobre o Chaplin e depois propuseram-me um sobre Picasso. Por estranho que pareça nunca se publicou um livro sobre Picasso em Portugal. É engraçado o primeiro sair em 2016. O Museu Picasso em Paris reabriu o ano passado, depois de muitas obras, e mandaram-me um catálogo cronologicamente minucioso que me ajudou muito. As opiniões tinha eu, mas as minúcias cronológicas ou biográficas nunca me preocuparam muito, só as sabia por alto. O meu texto é… –  o que quer que lhe diga? – o melhor livro sobre Picasso [risos]. São 100 páginas, mas diverti-me a fazê-lo. E tenho por Picasso a admiração que calcula.

Não se aborrece com a vida na aldeia?

Nunca na vida me aborreci. Aborreço-me com a vida, na vida não! Quando há interesses – ou oiço música ou vejo filmes, ou leio, escrevo… – uma pessoa não se aborrece. A minha mulher é também historiadora da arte. Toma como pretexto a casa para não trabalhar mais, mas publicou coisas importantes em Portugal.

Como se conheceram?

Trabalhámos ambos com o Pierre Francastel na Escola de Altos Estudos, aí fizemos conhecimento e depois casámo-nos. De maneira que temos conversa e, sobretudo, mais ou menos a mesma opinião sobre as pessoas. Na família dela há um lado burguês, médico, há um lado aristocrático e um lado que deu arquitetos – entre eles o da nossa casa – que é da família célebre dos arquitetos de Versailles, os Blondel. De vez em quando digo que sou primo deles.

Mantêm casa em Lisboa?

Sim. É uma casa relativamente grande e com uma vista sobre o Tejo extraordinária. Vê-se o Bugio da janela. Isso faz-me um bocado de falta em França, o horizonte fluvial, embora vivamos perto do Loire, numa região muito bonita.

Fala com a sua mulher em francês ou português?

Sempre em francês, até para lhe dar um certo apoio moral, linguístico, mas em Lisboa ela fala português com a empregada, que é brasileira. De início a empregada ria muito, e a minha mulher ficava desconfiada. Aliás ela é muito francesa, com todas as qualidades e todos os defeitos dos franceses.

Quais são os defeitos dos franceses?

Chauvinistas, chauvinistas, chauvinistas. Não há nada a fazer.

No entanto a sua mulher casou com um estrangeiro.

Casou porque me achava assaz francês. Conheceu-me no círculo do Francastel, onde eu era praticamente um intelectual francês, com dois doutoramentos em França. E tinha uma promessa de entrada no CNRS, quando o 25 de Abril me fez regressar a Portugal.

O Amadeo de Souza-Cardoso tinha uma frase onde dizia: ‘Em Paris respira-se; em Lisboa abafa-se’. Quando foi para Paris também sentiu isso?

Fui a Paris pela primeira vez em 1946, em viagem. Havia realmente uma respiração ali, que eu antes ignorava. Se essa frase era verdade em 1914 ou 15, continuava a ser verdade em 1945, no fim da guerra. Eu passei o último ano da guerra em Angola e em 46 fiz essa viagem a Paris. Era isso: uma respiração que hoje a vossa geração já não sente. Lembro-me de ver o primeiro cartaz do Partido Comunista Francês, olhei e não queria crer nos meus olhos.

O que esteve a fazer em Angola?

Vivi em Angola o ano de 1945 todo. O meu pai tinha morrido, havia negócios de família ligados ao café e coisas assim, e um amigo de meu pai quis dar-me um bom futuro em Angola. Fui para lá como adjunto do diretor de importantes companhias, com o projeto de lá ficar e fazer carreira. Mas ficou logo cortada ao fim do primeiro ano.

Porquê?

Não me dei bem no meio daquele colonialismo torpe e trouxe de lá um romance, Natureza Morta, que foi retirado do mercado e valeu-me ter sido arredado da empresa. Lembro-me de patrão dizer à minha mãe: ‘Ninguém fez mal ao seu filho lá’. É verdade, ninguém me fez mal, até era muito bem tratado.

O que o indignou então?

Andei pelo interior e vi como se comprava a mão-de-obra. Os negros eram pagos e, conforme o ‘contrato’ obrigatório dos indígenas, deixavam o dinheiro todo para comprarem óculos escuros e outras coisas na loja da fazenda. Era uma forma de escravatura e uma vigarice. Depois vivi na fazenda açucareira do Bom Jesus e presenciei a miséria de toda aquela gente, que andava de serapilheira enrolada aos rins, a trabalhar de sol a sol, a fazer as plantações. E foi daí que tirei o meu romance.

O seu pai tinha estado em Angola?

Não, não. Nunca. Tinha negócios mas por correspondência.

O que faziam os seus pais?

O meu pai era contabilista em Tomar e em 1922 concorreu a um posto muito importante na Companhia das Lezírias. Veio a Lisboa, sem recomendações, fez as provas do concurso e voltou para casa. Daí a 15 dias recebeu uma carta a dizer ‘O senhor ficou classificado em primeiro lugar. Se o posto lhe interessa venha falar connosco’. O lugar era realmente bom e a família veio para Lisboa, onde ficámos a viver, e fomos perdendo todo o contacto com Tomar. Hoje Tomar é para mim uma lembrança histórica.

Que idade tinha quando veio para Lisboa?

Tinha cinco meses quando viemos para aqui perto, na Travessa do Possolo. Vêm daí as minhas primeiras vindas ao Jardim da Estrela, com a criada. Depois mudámos de bairro e só muito mais tarde, quando regressei a Portugal, em 1989/90, é que redescobri o Jardim da Estrela. Passei a vir quase todas as manhãs. Escrevi muito, li muito aqui, dei entrevistas, fui filmado, recebi amigos aqui, até teses de doutoramento aqui foram discutidas. É um sítio muito agradável e no inverno, como está frio, ninguém vem cá para fora.

Vinha cá para fora no inverno?

Se não chovesse vinha para aqui, bem abafado. Os empregados riam-se muito e chamavam-me: ‘Venha para dentro, aí ainda se vai constipar’. Constipava-me noutros sítios, não no Jardim da Estrela. Muita gente vem ter comigo, colegas ou antigos alunos, e intitulo-me mesmo ‘Visconde da Estrela’, e com todo o direito, porquanto este jardim foi pago por um ‘brasileiro’ [emigrante no Brasil] que deu muito dinheiro para a plantação e por isso foi feito fidalgo, e depois barão, e depois visconde e enfim conde da Estrela. Morreu no Brasil e desapareceu, mas acontece que o sujeito tinha o meu nome, Rodrigues. Logo… E depois há o jus solis, que reivindico!

Como começou a interessar-se por arte e a visitar exposições?

O interesse vem das visitas que fazia ao Museu de Arte Antiga com o meu pai, para ver o Nuno Gonçalves. Meu pai era um intelectual contrariado, para ganhar a vida foi contabilista e depois comerciante. Quando saiu da Companhia das Lezírias montou um comércio de móveis e decorações na Av. da Liberdade. Foi uma casa que teve um certo renome durante sete, oito anos e eu herdei-a. Ainda a geri durante cerca de um ano, mas não era coisa que me interessasse, embora chegasse a dirigir decorações. O meu pai morreu muito novo, com 48 anos. Eu estava na Faculdade de Letras, tive de interromper o curso para tomar conta da vida familiar, e depois fui para África e voltei – voilà.

O que foi fazer quando regressou a Portugal?

Fui editor. Em 1948 comecei a publicar o Grande Dicionário de Língua Portuguesa de Morais. A iniciativa foi do António Pedro, que entretanto tinha esse negócio na mão e não sabia o que havia de fazer. O Morais é o grande dicionário da língua, tem 238 mil entradas, em 12 volumes. Depois da publicação, em 59, fui viver para Paris, a trabalhar na École des Hautes Études. Aliás, não tínhamos autorização da PIDE para publicar outros títulos.

É quando está na editora que começa a dar-se com artistas?

Essa fase coincide com a escrita do Natureza Morta e com a criação do Grupo Surrealista de Lisboa. O António Pedro convidou-me para esses encontros e daí resultou a formação do grupo com o Fernando de Azevedo e o Vespeira, sobretudo, e também o Cesariny e o O’Neill; e depois com o [Fernando] Lemos.

É nessa altura que começa a fazer crítica de arte?

Comecei em 1946, exatamente, com o Fernando Azevedo e o José Ernesto de Sousa, num jornal chamado Horizonte – Jornal das Artes. Mas crítica de arte propriamente dita, a crítica de exposições, foi em Paris, anos 60, na equipa da Art d’Aujourd’hui, que eram os melhores críticos que ali havia, na altura. Entrei para a Associação Internacional de Críticos de Arte, mais tarde criei a secção portuguesa e acabei por ser presidente geral.

Quando fazia críticas mais duras, isso podia dar azo a zangas?

É óbvio que havia quem achasse ser melhor do que eu dizia, mas isso é normal e bem humano. Depois, em 1952, fiz, com o Lemos, a Galeria de Março, onde organizei trinta e tal exposições. Toda a gente se queixava de que não havia sítio onde expor em Lisboa, porque o SNI tinha a sua referência política e a SNBA tinha uma referência tradicional limitada.

Académica…

Sim, e galeria não havia nenhuma em Portugal, por isso diziam que não havia onde expor. Mas depois as pessoas a mudavam de passeio quando me viam, porque afinal não tinham nada para expor. Muito mais tarde, quando foi o 25 de Abril, todos os manuscritos que havia nas gavetas também não apareceram, pois não? Desculpas, muito nacionais, de todos os tempos…

Alguma vez tentou pintar?

Ora essa! Pintei e até expus no primeiro Salão Surrealista em 49. Os quadros eram maus, só com alguma imaginação, mas eu não tinha técnica nenhuma de pintura. Durou dois ou três anos, não tem importância. Mas a minha ligação à arte é de necessidade. Respiratória, digamos.

E como se foi desenvolvendo essa ligação?

Através de amigos. Fui muito amigo do Diogo de Macedo, que era o diretor do Museu de Arte Contemporânea, fui amigo, respeitosamente, do João Couto, diretor do MNA, fui amigo do Almada, do Viana, do Manta, ainda apanhei essa gente em fim de vida. Também acamaradei com a minha geração. Com o Pomar havia mal entendidos ao princípio, hoje damos grandes abraços quando nos vemos e rimo-nos dessas coisas antigas. E depois vieram os mais novos que eu, a quem dei a mão – ou empurrei -, e outros que acham que não percebo nada do que se está a passar. Talvez não se esteja a passar tanto como isso…

Continua a acompanhar o que se vai fazendo?

Na medida do possível.

Vai a Serralves, por exemplo?

Agora já não vou porque não estou em Portugal, mas fui muito a Serralves. Durante vinte anos presidi ao júri do prémio da AICA e foi lá que vi um Cabrita Reis e fiquei entusiasmado. Achei que era qualquer coisa muito importante, na altura, e fiz com que lhe dessem o prémio, embora nem o conhecesse.

O que viu na obra dele?

A coerência imaginativa da construção. Habitava perfeitamente o espaço, que é, aliás, um espaço ingrato, criado pelo Siza Vieira.

Também vê vídeo arte?

Vi coisas, na sua altura. Interessa-me como curiosidade. Há novas formas de expressão que vivem muito da publicidade, dos encontros e das manigâncias entre os museus e os mercados. Conheço isso por dentro e sei como isso se passa. Conheci os grandes marchands de arte de Paris e o pai deles todos, o Kahnweiler, o homem do Picasso. Era um senhor baixo, todo careca, muito inteligente, que gostava de conversar, e simpatizou com um jovem crítico português. Isso já nos anos 50 e 60.

Como foi constituindo a sua coleção de arte?

Sobretudo eram ofertas, embora tenha comprado algumas coisas. Um excelente Almada comprei-o diretamente ao pintor, depois vendi-o ao Museu do Chiado. Mas as ofertas, não ia vender. Vendi duas ou três coisas que tinha comprado, por exemplo uma vista de Lisboa rara, do Hogan, ao Museu da Cidade, e um Amadeo Souza-Cardoso que me veio à mão.

A quem o vendeu?

A um particular – mas através de uma galeria – porque infelizmente o Museu do Chiado não tinha dinheiro para o comprar.

E hoje tem pena de ter vendido esses quadros?

Não, não. Quando estive na Fundação Gulbenkian, em Paris, decorei as salas com quadros meus. E quando me vim embora, como não tinha espaço em casa, os quadros ficaram dois ou três anos na Gulbenkian em caixotes. E foi daí que a minha mulher teve a ideia de fazer uma exposição no Museu do Chiado, com a Raquel Henriques da Silva, que era a diretora e tinha sido minha aluna. A exposição teve bastante eco e logo a seguir apareceu a Câmara de Tomar com a ideia de eu fazer uma doação. Aceitei, dei tudo – cento e tantas peças – e fizeram um museu perfeitamente adequado. Resolveu-se o problema do leilão ou doação.

Ainda ficou com algumas pinturas?

Ainda tenho quadros em França. A Tomar só dei pintura portuguesa. Pinturas francesas e brasileiras, entre outras coisas que me ofereceram, essas conservo ainda.

Fez dois doutoramentos em Paris. Quando percebeu que o terramoto e a reconstrução pombalina podiam dar uma boa tese?

Quem percebeu bem foi Francastel. Eu fiz-lhe uma proposta de tese que era a passagem do barroco ao neoclassicismo e nessa passagem entrava o terramoto. Francastel leu as trinta páginas que eu tinha escrito para apresentar a ideia mas, como bom francês, tinha reservas em relação ao barroco. ‘O terramoto é uma coisa extraordinária, acha que é capaz de fazer uma tese sobre a criação da cidade nova?’. A minha perspetiva não era essa mas fiquei de pensar. Vim a Lisboa e tive a sorte de descobrir os seis planos propostos ao Marquês de Pombal para a reconstrução da cidade, que estavam numa gaveta em Santa Clara, numa instituição militar, e nunca tinham sido vistos. Era uma boa razão para fazer a Lisboa pombalina. A coisa correu bem, Francastel gostou da tese e até escreveu o prefácio para a edição francesa, coisa que ele nunca fizera.

E o segundo doutoramento?

Esse foi sobre o romantismo português como fenómeno ideológico político, literário e artístico. O meu pai tinha uma boa biblioteca e eu tinha lido os românticos todos – Júlio Dinis, Camilo, Coelho Lousada e autores assim, que mais ninguém leu. Tinha lido tudo isso em rapazinho, de modo que foi só lembrar essas coisas e organizar o discurso académico. Depois fiquei desempregado e fiz cartões-de-visita a dizer ‘Docteur in partibus’.

Em que ano é isso?

Em 1971, 72. Depois comecei a pensar: tinha a proteção do Chastel e do Braudel, e havia uma porta semiaberta para o CNRS [Centre National de la Recherche Scientifique], quando rebenta o 25 de Abril. Então havia que fazer alguma coisa nesta terra e vi-me professor catedrático na Universidade Nova, que estava a ser criada. Chamaram-me lá para conversar, e sugeri criar um curso de História da Arte. O reitor Fraústo da Silva, que me conhecia, aceitou a ideia e nomeou-me. Passei esse verão em Armação de Pêra com ele, a congeminar a formação de um curso de licenciatura especializada, que era o primeiro do país.

Como nasce A Arte em Portugal no Século XIX, um dos seus livros mais conhecidos?

É a continuação do Lisboa Pombalina. Comecei a trabalhar nele em 1963, 64, o primeiro volume é publicado em 66, portanto demorei três anos a escrevê-lo. Depois foi o século XX, até 1960, e, quando estava em ano sabático no Algarve, meti-me na aventura de uma história da arte ocidental desde a revolução francesa até à atualidade: de 1789 a 1989, 200 anos. Estava a fazer isso quando veio o convite para dirigir o centro da Fundação Gulbenkian em Paris. Aceitei e tive de interromper o trabalho. Estive lá seis anos e fiz muitas coisas mas quando regressei tinha o livro praticamente feito. Depois ainda publiquei outros e aos 80 anos resolvi voltar ao romance. Escrevi dez romances e livros de contos de enfiada e parei. Não me apetecem mais. Agora estou a ‘pastar’ em Jarzé e a Imprensa Nacional quer publicar as minhas obras completas – uma escolha de obras, dá 15 ou 16 volumes, de cem livros, livrinhos e livrões que fui publicando.

De tantas personalidades que conheceu, qual considera a mais brilhante?

Não diria brilhante, mas lembro o António Sérgio. Saíamos da Sá da Costa em conversa, descíamos o Chiado, subíamos a avenida e parávamos à porta dele na Lapa, ele fresco, e eu de língua de fora, porque eram quatro ou cinco quilómetros em marcha acelerada. E também Vieira de Almeida, que foi meu professor de Filosofia na Faculdade de Letras. Digo sempre que ele me ensinou a pensar. E Reynaldo dos Santos. As suas afirmações históricas às vezes arrepiavam-me, mas tinha uma inteligência extraordinária e aquilo a que se chama ‘olho clínico’, como médico que era. Acertava sempre. Sobretudo era um Senhor, e tinha um à-vontade de homem rico e independente. Foram três pessoas que me marcaram. Em França contaram, de outro modo, Francastel e o André Chastel. Em Itália, o Giulio Carlo Argan. Essa gente toda já morreu. O mal, quando se chega aos 90 anos, é que, se olhamos para trás, desapareceram todos.

E como convive com isso?

Convivo naturalmente. Qualquer dia sou eu que me vou embora. Não tenho pressa nem angústia. Não sou otimista nem pessimista. Como dizia o Almada, ‘não há qualquer mal-entendido entre mim e a vida’. Ouvi, há dias, o meu caro Eduardo Lourenço, numa entrevista, falar na morte. Ele é mais metafísico que eu. Eu sou ateu naturalmente. A ideia de Deus nunca se me aflorou. A minha mãe era católica do Sagrado Coração de Jesus, o meu pai era teísta, eu sou um ateu de cultura católica, porque tenho de olhar para os quadros e saber o que estão a dizer. Encontro-me aqui no jardim com católicos que olham para a Basílica da Estrela e não conhecem os santos nem as figuras das virtudes que lá estão. Aliás, ao contrário do que já escreveram de mim, não sou céptico mas sim asséptico (sempre com ‘P’, se faz favor).

jose.c.saraiva@sol.pt