A Sociedade da Indignação: José Sócrates e o MasterChef Júnior

O progresso tecnológico e digital tem transformado as nossas vidas. E, no cômputo geral, tem provocado melhorias substanciais no nosso bem-estar, quer no que respeita à saúde, quer no que respeita ao lazer. O impacto das novas formas de comunicação digital é gigante na organização social e na pauta valorativa dos cidadãos: de tal forma…

Porventura, o século XX na sua totalidade não conheceu tantas transformações ao nível da inserção da pessoa humana na sociedade e a sua interacção com o outro (nas suas várias ambiências, incluindo a ambiência física e ecológica) e com o resto do mundo como aquelas que o século XXI já conheceu (e ainda nem perfez o seu primeiro quartel) – ou, pelo menos, as transformações do século anterior ocorreram de forma muito mais vagarosa do que as que já se verificaram no presente século.

Hoje, limitamos a nossa análise à rede social que integrou, pacífica e silenciosamente, a vida de todos nós, incluindo entidades governamentais, empresas, organizações não governantas e a associações da sociedade civil em termos amplos: o Facebook.  Mark Zuckenberg tem hoje mais poder do que qualquer Primeiro-Ministro ou Presidente da República: vivemos no século Zuckenberg. Evidentemente, a criação do Facebook foi só possível devido a invenções e criações a montante: onde se destaca o papel pioneiro de Bill Gates na massificação do uso do computador (o “pc”).

No entanto, enquanto que a utilização dos computadores (desacompanhado dos seus conteúdos) gerou consequências sobretudo ao nível organizacional a nível macro, o Facebook teve um impacto sistémico – a nível micro, revelando-se em todos os detalhes da vida dos cidadãos. Desde os mais ínfimos gestos rotineiros até à divulgação de eventos ou a formação de tertúlias para discutir assuntos políticos e sociais. O Facebook tanto pode ser um diário pessoal como um jornal, como algo que pode potenciar a prática de actos ilícitos, quer de natureza civil, quer de natureza penal.

O que têm em comum as várias utilizações do facebook? Destinam-se às multidões, às massas. Desde a selfie a comer os cereais ao pequeno-almoço até às imagens captadas num concerto ou como testemunha de um acidente gravíssimo até às reflexões políticas sobre a actuação do Governo ou da oposição – tudo é feito para as massas seguirem, acompanharem e, em última instância, conferirem importância à nossa existência. Porque a natureza humana é assim: não vive sem o outro (é a designada “alteridade”). O que o Facebook revela é que para nós, seres humanos, não basta a vivência com o outro – é necessário a vivência para e pelo outro.

A importância e o impacto do Facebook ainda não podem ser totalmente estudadas e avaliadas: o processo sistémico de transformação da sociedade pelo Facebook ainda está em andamento. É um processo contínuo. Que já se fez sentir na economia, na comunicação social, na psicologia, mesmo na medicina – mas ainda não se manifestou, por exemplo, no Direito, na sociologia e mesmo na política. O discurso político ainda não se adaptou ao facebook, estando formatado ainda para os tempos da televisão única e dominante.

Pense-se nos casos recentes do gorila abatido, no Zoo do Ohio, para proteger uma criança que inadvertidamente entrou na jaula do animal; ou no caso de um concorrente, de onze anos, que prestou informações falsas sobre uma receita ao seu adversário em concurso para mais facilmente conseguir a vitória.

O caso gorila revela a inversão de valores: prefere-se chorar a morte do gorila do que salientar a manutenção da criança em segurança. Chegámos ao cúmulo de se admitir argumentos como “crianças há muitas, aquela espécie de gorila encontra-se em extinção”. Por amor de Deus! Este é um argumento próprio das sociedades totalitárias: não há muitas crianças – todas as crianças, todos os seres humanos são únicos e insubstituíveis. Esse é o cerne do princípio da dignidade da pessoa humana: a consciência de que cada pessoa é um ser único, singular, diferente, sendo ela própria um evento histórico marcante. A vida humana não pode ser sacrificada , por autoridades públicas ou por autoridades de natureza privada, para salvar um animal. Porque muito que nos lamentemos – e lamentamos muito – a morte do gorila.

Mais grave ainda (até porque espacialmente mais próximo) é o caso da criança de onze anos que está a ser objecto de um julgamento popular inqualificável nas redes sociais por comportamento desonesto em concurso televisivo. É assim: todos os dias – todas as horas? –  há uma nova causa de indignação geral e colectiva no Facebook. As pessoas já sentem necessidade de, após travarem conhecimento que lhes cause a mínima discordância, protestar violentamente nas redes sociais. E não se poupam palavras: todo o ódio, toda a discordância, toda a fúria interna se materializa em palavras e frases no teclado dos respectivos computadores. Vivemos na sociedade da indignação.

O problema é que a indignação se deve a causas menores ou sem a dignidade suficiente para gerar movimentos de protestos. Estamos a falar de uma criança de onze anos, que acabou de sair da escola primária e que queria ganhar um concurso. É censurável a sua atitude? É – mas o processo de socialização e educação não serve para isso? Este participante não está precisamente na idade de aprender? Mas – que diabo! – quem não errou aos onze anos? Este rapaz anda no sexto ano de escolaridade …É preciso da noção da realidade – e do ridículo!

Honestamente, nunca julgámos que a “guarda pretoriana” dos bons costumes facebookianos fosse reagir com tamanha fúria a um comportamento de uma criança que está em pleno processo de educação e socialização. Perante o teclado do computador, as pessoas não reflectem, não pensam – deixam –se guiar pelos instintos, exteriorizam as emoções sem o devido crivo da razão.

Dito isto, note-se que este comportamento não é exclusivo de crianças com onze anos: os adultos também o fazem, em concursos televisivos e não só. Só que fazem-no com mais argúcia e subtileza – ora, disfarçando e escapando ao julgamento da guarda dos costumes facebookiana; ora, actuando com tamanha mestria que apenas merecem o aplauso e a admiração desta mesma guarda.

É que os mesmos que se prontificam a censurar uma criança de onze anos por uma actuação num programa de televisão (o Masterchef para crianças) – são os mesmos que são capazes de defender acerrimamente o estilo de vida de José Sócrates em Paris e Lisboa, utilizando empréstimos de amigos! A criança merece ser julgada no tribunal da opinião pública – José Sócrates é apenas uma “espertalhaço”. E dão-se ao trabalho de expressar tamanha indignação por um acto de um criança – mas que raramente se pronunciam (muito menos se indignam) com a tragédia a que a geringonça nos está a levar pé ante pé! É uma subversão de valores autêntica.

Por outro lado, o Facebook conduziu à desumanização da pessoa – e à consequente virtualização da pessoa humana. A pessoa humana virtual vale mais que a pessoa humana real. O exemplo da perseguição movida pela “guarda pretoriana dos costumes” facebookiana à criança participante do programa de Manuel Luís Goucha é eloquente: se a criança fosse filha de amigos nossos, de familiares  nossos ou dos nossos vizinhos não seríamos capazes de criticar e seria um assento alheio.

 No julgamento da criança e dos pais  seríamos compreensivos , procurando que a criança percebesse a censurabilidade da sua conduta. Mas como é um programa de televisão e o facebook se agitou, as massas não se contiveram e juntaram-se à indignação! Indignação – não nos fartamos de repetir para salientar o ridículo – por um acto de uma criança de onze anos!

A criança actuou mal? Certo. Compete os pais e à escola, assim como à comunidade local pelo exemplo, educá-la com seriedade, rigor e …humanidade. Não virtualidade. A guarda pretoriana dos bons costumes facebookiana pode, pois, baixar as armas, suster a irritação – e prosseguir a sua vida. Há tanta coisa que merece a sua indignação – porque não desta vez indigaram-se por assuntos sérios? Que valham a pena tanta indignação? Podemos tentar? Vá lá…