Será sinal de que um colega de escola primária, uma amiga de liceu, de ginástica, de não sei onde, não só se lembrou de mim, mas teve a curiosidade de ler um livro. Lá responderei que a cara não me é estranha, é verdade, quase nenhuma cara me é estranha, o que é um dos meus problemas: baralho rostos, esqueço-me.
Já dei por mim a sorrir e falar simpaticamente a trastes aos quais jurara nunca mais dirigir a palavra, porque passados uns anitos já nem sei quem são. O inconsciente defende-se do mal como pode, e no meu ficou incrustada a voz da minha mãe a mandar-me ser boazinha e sorridente com a humanidade inteira, não aceitar rebuçados de ninguém e oferecê-los a toda a gente. Antes assim.
Mais difíceis de contentar são aqueles que se plantam à nossa frente com uma embalagem de culpa que pretendem estoirar-nos no focinho:
– Vou levar o seu livro novo, embora esteja muito triste consigo.
E o que fizemos para os entristecer? Pensámos e escrevemos coisas diferentes do que eles gostariam que tivéssemos escrito. Tivemos a má-educação de pensar pela nossa cabeça.
– Nem parece uma pessoa de esquerda.
Dantes eu dizia: “Lamento”, agora já não minto. Digo: “Nunca me dedico a pensar o que vou parecer, nem me importo com isso”. Respondo devagar, já depois de assinar o livro, não vá a pessoa entristecida mudar de ideias, chocada pelo fraco efeito da sua chantagem sentimental.
Ainda vou à Feira comprar livros. Os vícios não se perdem só porque já não se tem espaço em casa para os guardar. Mas hoje, o que me atrai na Feira é esse trabalho fascinante de ler pessoas. Ver que livros escolhem, o que rejeitam. Atender pedidos:
– Ponha aí: ‘Para a Etelvina, com muita amizade’.
Explico que não conheço a Etelvina (nome fictício, homenagem a uma heroína de Sérgio Godinho), pelo que não faz sentido escrever que lhe tenho amizade. “Ora, mas tem ela por si”.
O conceito de reciprocidade ainda não entrou em Portugal: muito mar, muita Aljubarrota por digerir.
Já me pediram que escrevesse dedicatórias que fizessem voltar amantes fugidos, que consolassem da morte de um próximo, que resumissem o livro. Obedeço a todas estas ficções, feliz de encontrar quem, afinal como eu, acredite no poder transfigurador do romance.
Devo aos livros as escolhas fundamentais, os grandes encontros da minha vida, as principais descobertas e os erros mais cintilantes.
Todo o movimento implica desvio, tropeço – isso também o aprendi nos livros. Nos últimos anos, a leitura decresceu em Portugal; dizem-me que é consequência da crise, pergunto-me se não será antes essa uma das suas causas principais. Quanto menos se lê, menos soluções nos ocorrem.
As pessoas enfronham-se nas redes sociais, entretêm-se a passear por imagens de gatinhos ou calamidades, a gostar disto e não gostar daquilo, saltitando entre existências virtuais, e depois admiram-se de chegarem ao fim do dia cansadas e deprimidas.
Se um professor, ou um pai, ou uma mãe, não gostar de ler, dificilmente conseguirá transmitir o amor pela leitura. O exemplo é a única tecnologia educativa verdadeiramente eficaz.
As pessoas queixam-se do preço dos livros – uma queixa sem grande fundamento, porque os festivais de rock continuam a esgotar bilheteiras.
Acresce que um dos tesouros menos divulgados de Portugal é a sua extraordinária rede de bibliotecas públicas. Por que são tão pouco frequentadas? Saberão os portugueses que elas existem, e emprestam gratuitamente livros e filmes? Por que não se faz na RTP uma campanha intensa de promoção à leitura e às bibliotecas? Sem leitura não há pensamento, sem pensamento não há democracia.
A questão da escolha é importante: livros que dececionam significam, demasiadas vezes, leitores para sempre perdidos.
O relativismo festivo em que nos comprazemos escamoteia esta realidade. Sei, por experiência própria, que nenhum garoto de quinze anos fica imune a um poema de amor de Camões ou ao Poema em Linha Recta de Álvaro de Campos. E que todos têm direito a eles. Para começar.