A cultura da mulher-coisa

Vejo mais mulheres brasileiras preocupadas com o combate às rugas e à celulite do que com a igualdade de oportunidades

A recente violação de uma adolescente brasileira por mais de trinta homens pôs meio Brasil (infelizmente só meio) a debater as causas da ‘cultura do estupro’ que infeta o país.

Em 2014, o Brasil teve uma notificação de estupro (violação) a cada 11 minutos. Estima-se que 70 por cento das vítimas de violação sejam crianças e adolescentes, maioritariamente abusadas por familiares ou próximos. Imagine-se, então, a vastidão anónima deste universo de terror.

A sexualização exacerbada das mulheres brasileiras começa na infância e não é de hoje: tem sido usada como promoção turística e até como condimento civilizacional, demasiadas vezes com a cumplicidade das próprias.

O Brasil ainda não conseguiu criar um movimento feminista forte e influente; o peso das igrejas é uma parte da explicação, mas não basta para explicar as múltiplas camadas de desrespeito de que são alvo, na família, no trabalho, na sociedade, as pessoas do sexo feminino.

A obrigação social, imposta às mulheres ou assumida por elas, de manter a beleza e a juventude para lá de todos os limites é objetivamente mais forte no Brasil do que em qualquer outro país.

A cirurgia estética tornou-se uma obsessão; vejo muito mais mulheres brasileiras preocupadas com o combate às rugas e à celulite do que com a igualdade de oportunidades, a equidade salarial, ou com uma lei da interrupção da gravidez que trave o morticínio ou a mutilação das pobres e desfavorecidas (porque as que não o são não têm esse problema).

O pior da opressão é a interiorização de uma mentalidade submissa, supostamente ardilosa e estratega.

Mas não é só no Brasil que nos defrontamos com percentagens altíssimas de mulheres coniventes com o sistema que as discrimina, convencidas que as artes ditas ‘femininas’ da sedução e da intriga as conduzirão à liberdade e ao poder.

Caem na esparrela do ‘mistério’ feminino que incendiou as fantasias eróticas do Dr. Freud e que, como Simone de Beauvoir limpidamente explicou nesse ensaio fulgurante que é O Segundo Sexo, consiste apenas na completa coisificação da ‘Mulher’. ‘A Mulher’ não existe, como não existe ‘O Homem’: existem seres individuais e únicos, que devem ser considerados na sua singularidade irredimível. Mitificar a imagem da ‘Mulher’ é despojá-la de humanidade.

Os bárbaros violadores, tal como os bárbaros polícias que perguntam às mulheres violadas se já tinham praticado sexo em grupo ou se tentaram fechar as pernas, não são exclusivos do Brasil, e são apenas o elo final de uma cadeia de pensamento que entende que as mulheres devem ser invisíveis (‘recatadas’, dizem eles), tímidas, oh sim, tímidas e sacrificadas.

Este modo de pensar vigora há séculos: é a vingança do homem diante do poder procriador da mulher – poder contra o qual os homens começaram a revoltar-se na Pré-História, quando nem sequer sabiam que a gestação de uma criança se devia também a eles. Há mulheres que aconselham amigas que foram violadas a ‘calar-se’, para não ficarem ‘maculadas’.

Há mulheres, até cultas & adultas, frequentadoras da RTP 2 e de colóquios eruditos, que aconselham mulheres infelizes a não se separarem dos homens que as fazem infelizes para não ‘mancharem’ a sua ‘reputação’.

Reputação é um rótulo de obediência e acatamento feito para manter as mulheres bem rolhadas.

Quando, como acontece no Portugal de hoje, uma menina de dez anos é afastada da escola e obrigada a completar os estudos básicos através de aulas individuais com uma professora, para não ir contra ‘a cultura’ do pai, que não quer que ela conviva com rapazes porque já a tem prometida para casamento na sua ‘comunidade’, isso é ‘cultura do estupro’ – uma cultura em que as mulheres não têm voz nem auto-determinação.

Quando, como acontece no Portugal de hoje, uma mulher grávida é violada pelo seu próprio psiquiatra, e o violador é ilibado, isso é ‘cultura do estupro’ – uma cultura que culpa a vítima para melhor a silenciar.

A mim parece-me evidente que a tão moderna ‘gestação de substituição’ é também fruto dessa cultura que faz do corpo da mulher um bem móvel à disposição de interesses alheios; uma cultura que se funda na imolação de uma mulher à maternidade, virginal mala do filho de Deus Pai.

Que essa gestação seja circunscrita ao puro ‘altruísmo’, como se pretende que seja em Portugal, em meu entender, só acentua essa (des)consideração das mulheres como seres destinadas ao sacrifício, à entrega e à renúncia.

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