1.E aí está: afinal, temos mesmo Presidente da República. Para além dos afectos, das “marselfies”, do ritmo estonteante, quase irrealista do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa – as competências constitucionais do Presidente continuam em vigor e a autoridade da instituição presidencial (ao contrário do que já defendeu Vasco Pulido Valente) não foi minimamente beliscada. Pelo contrário, o Presidente da República é a figura política mais popular conjunturalmente – e até, porventura, o Presidente mais popular da III República. Resta saber se é por enquanto ou se será uma tendência para manter e aprofundar.
2. A política voltou, pois, a Belém esta semana: o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tomou posição sobre duas matérias relevantíssimas – as 35 horas para os funcionários públicos, as alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida e, conexionada com estas, as chamadas “barrigas de aluguer”. Quanto às 35 horas, o Presidente Marcelo promulgou, com um expressivo “mas”; quanto às alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida, o Presidente Marcelo aprovou o alargamento do seu acesso, a suavização dos seus requisitos, a manutenção do anonimato do dador; vetou, porém, as “barrigas de aluguer” ou “gestação de substituição”, na expressão legislativa.
3. Importa analisar a abordagem do Presidente Marcelo aos dois diplomas separadamente. No caso das 35 horas, Marcelo promulgou, efectuando, porém , uma extensa declaração contendo o seu pensamento político e jurídico- o qual se afasta totalmente do Governo. A primeira curiosidade a destacar é que o Presidente Marcelo aproveitou o ensejo para exercitar as suas duas facetas de há décadas: a de comentador e a de parecerista. Muitos afirmaram que a declaração política de Marcelo foi igual a um comentário na TVI ou, mais remotamente, a uma crónica na página 2 do Expresso. Admitimos que há, na estruturação do texto publicado no sítio da Presidência e nas suas premissas de actuação, um traço marcante do comentador político. Mas há mais: há o Marcelo consultor jurídico.
4. A declaração política do Presidente faz lembrar – dada a incrível similitude – os pareceres de Direito que Marcelo Rebelo de Sousa escrevia. Quem ler a declaração e estiver ligado às lides jurídicas ou conhecer minimamente o trabalho profissional de Marcelo Rebelo de Sousa – reconhecerá que foi o jurisconsulto Marcelo Rebelo de Sousa a pronunciar-se sobre a constitucionalidade das 35 horas. O jurisconsulto Marcelo Rebelo de Sousa emitiu um parecer para o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
5. Só que o parecerista, Marcelo Rebelo de Sousa teria concluído pela inconstitucionalidade da Lei – o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa alterou a conclusão e limitou-se a advertir o Governo que estará atento à execução da medida para apurar se implica (ou não) um aumento da despesa por via de acto legislativo parlamentar. Evidentemente que com tal declaração, Marcelo se entregou ao Governo, ficando nas suas mãos – a informação sobre se a medida legislativa se traduz em concreto em aumento de despesa só poderá ser dada pelo próprio Governo. E o próprio Governo – ainda para mais com um Primeiro – Ministro tão habilidoso – saberá fazer o que for preciso para sonegar ou dar a volta a esse aumento de despesa…
6. Não acreditamos, pois, que Marcelo Rebelo de Sousa suscite a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade – até porque tal se revelaria contrário ao pensamento defendido ao longo de anos do Marcelo comentador. Todos nos recordamos das críticas corrosivas que Marcelo foi deixando ao então Presidente Cavaco Silva pelo facto de promulgar as leis, só as remetendo para apreciação pelo Tribunal Constitucional após a sua entrada em vigor.
7. Ora, Marcelo Rebelo de Sousa, neste caso, fez exactamente o mesmo que criticara a Cavaco Silva: apresentou dúvidas sérias sobre a constitucionalidade da Lei, mas promulgou, não enviando para o Tribunal Constitucional a título preventivo. Em rigor, Marcelo Rebelo de Sousa foi mais longe na atitude que tanto censurara a Cavaco Silva: Marcelo já admitiu que logo se verá se provoca ou não a intervenção do Tribunal Constitucional, depois de a lei entrar em vigor. O que significa que o Presidente tem a convicção de que a lei é inconstitucional – e discorda dela politicamente. Não obstante, promulga.
8. E note-se que a eventual inconstitucionalidade só se poderá verificar até Dezembro: logo, em Outubro, o Governo (e a maioria parlamentar que o suporta) aprovará um Orçamento, o qual poderá prever o aumento da despesa cobrindo as 35 horas. Logo, no Presidente da República só poderia suscitar o pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, no máximo, até Setembro. O que Marcelo não quer é causar problemas a António Costa, contribuindo para a erosão da sua maioria política de apoio.
9. Ademais, a gestão política do tema por Marcelo Rebelo de Sousa foi mediaticamente genial. Do ponto de vista da gestão política. Senão, vejamos:
1) Marcelo e a sua assessora Maria João Ruela (ex-pivot da SIC, moderadora do programa de Luís Marques Mendes) definiram um plano de controlo de eventuais danos colaterais da decisão presidencial quanto às 35 horas;
2) Marcelo conversou, em Belém, com Marques Mendes, alertando-o para a eventual inconstitucionalidade do diploma, expondo o seu ponto de vista sobre a adequada interpretação da norma constitucional que veda a aprovação de medidas de aumento da despesa pelos deputados – maxime, a sua interpretação extensiva segundo a qual se a Constituição veda a iniciativa, por maioria de razão veda a aprovação de Leis;
3) Marques Mendes concordou com o Presidente e sua fundamentação jurídica;
4) Marques Mendes marca a agenda política, revelando disfarçadamente o pensamento do Presidente Marcelo;
5) Marcelo anuncia – dois dias depois do programa de Marques Mendes – que promulga a Lei, mas com reservas e alertas. Ou seja: politicamente, na cabeça das pessoas, o que ficou foi que Marques Mendes (falando pelo povo laranjinha) considera que a lei que permite aos funcionários públicos trabalhar menos é inconstitucional – e o Presidente Marcelo, por seu lado, percebe a fundamentação de Marques Mendes, mas está do lado dos socialistas, dos bloquistas e dos comunistas e dos funcionários públicos. Enquanto o PSD (Marques Mendes incluído) é sectário; Marcelo é tolerante, pluralista e não quer saber do PSD para nada. Conclusão: Marcelo mantém os níveis de popularidade (à esquerda) intactos. Mesmo discordando de praticamente tudo o que a geringonça aprova! Temos de admitir: Marcelo é genial na construção de factos e narrativas políticas!
10. O mesmo sucedeu quanto às alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida: Marcelo discorda, tem objecções de fundo quanto ao seu mérito político e às implicações sociais que gerará. No entanto, promulga-as. Argumento: o parecer do Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida não lhe deu alternativa, não quer ir contra os especialistas. Então para que serve o Presidente da República? Então porque não passamos a pedir ao Conselho Nacional para promulgar leis que impliquem matérias de consciência? Convenhamos: desta feita, Marcelo Rebelo de Sousa foi muito herbívoro…
11. A alteração legislativa referente às “barrigas de aluguer” é um caso ligeiramente diferente, que merece texto autónomo. Por ora, importa concluir: Marcelo Rebelo de Sousa, em poucos meses de mandato, já conquistou o seu lugar na História. O do Presidente que consegue criar a aparência de concordar sempre com o Governo e a maioria política de extrema-esquerda – discordando sempre no fundamental. Marcelo concorda, discordando.