Ana Campos: ‘O momento mais marcante foi tirar aquele bebé lindo e saber que a mãe ia ser desligada’

A diretora clínica adjunta da MAC acompanhou desde a primeira hora a evolução de Lourenço. A obstetra admite que houve muita perplexidade entre enfermeiros e médicos, mas no final venceu o otimismo.

Foi o caso mais difícil com que se viu confrontada na sua carreira?

Sim. Foi único e o primeiro. Mas é preciso notar que isto foi um trabalho multidisciplinar. O meu papel foi vigiar a gravidez mas o aspeto mais complexo não me coube a mim: foi sem dúvida manter as funções vitais desta mulher durante tanto tempo. 

Lembra-se de quando a chamaram?

Telefonaram-me no dia seguinte a ser declarada a morte cerebral. Na altura pensava-se que era até uma idade gestacional inferior.

Contaram-nos que a barriga não se notava ainda.

Era uma senhora magra, a barriga não se notava. Num primeiro momento, após ser declarada a morte cerebral, foi enviada para doação de órgãos. Sabia-se que havia uma gravidez mas os colegas pensaram que o feto ia deixar de ter funções vitais. Foi em função das avaliações posteriores que se viu que o feto permanecia vivo.

Como reagiram à ideia de prolongar a gravidez?

Pensar numa grávida a funcionar como incubadora do próprio filho é uma situação controversa. Nem toda a gente o aceita. Lá fora, numa última revisão sistemática, houve o registo de 30 casos, de que resultaram 12 nascimentos. Não tínhamos certezas.

Houve resistência?

Não. No serviço, havia essencialmente perplexidade por ser uma decisão de inédita. Como depois de ouvir a família houve uma aceitação de se continuar a gravidez, aquilo que estabelecemos foi que, se houvesse uma situação de perigo extremo, uma paragem cardíaca ou qualquer intercorrência, que a situação pararia ali.

Houve algum momento crítico?

Nunca houve, é extraordinário. Este feto é um resistente, desde o primeiro momento.

Isso surpreendeu-a?

A cada semana que passava, todos nos interrogávamos se ia passar mais uma.

Dormia sobressaltada?

Sim, tinha muitas vezes o telefone na mesa de cabeceira à espera de noticias. Sabíamos que, se acontecesse algum problema antes das 24 semanas, não havia nada a fazer. De resto, esta grávida tinha feito diagnóstico pré-natal e  não havia alterações nos cromossomas, portanto o feto tinha um bom prognóstico.

 Como se geriu no dia a dia ter uma pessoa que tinha morrido e uma vida a crescer dentro dela?

Penso que foi o aspeto mais importante com a qual equipa se teve de confrontar. Foi uma situação brutal para nós e para a família:  ninguém estava à espera nesta família que esta mulher morresse. Quando lhe disseram que o feto estava vivo, a família concordou e assinou os termos de responsabilidade. Sabíamos que havia  enormes riscos: infeção, aborto, restrição do crescimento…

Foi um milagre?

Não lhe chamaria milagre. É o resultado da ciência médica moderna, que permite um suporte de vida de tal maneira adequado que torna possível algo assim.

Que imagem vai guardar deste caso?

O que para mim foi mais marcante foi chegar o momento do parto e tirar um bebé com aquela vitalidade, aquele peso, um bebé lindo, rosado e saber que aquela mãe ia ser desligada a seguir.

Chorou?

Não chorei, mas emocionei-me. 

Esta mulher foi acompanhada no mesmo serviço de S. José  onde, no final do ano passado, morreu um jovem à espera de operação, caso em que se falou de cortes e dificuldades. Que lição se pode tirar?

A medicina não é matemática. O SNS luta atualmente com muitas dificuldades, vivemos uma situação e há um défice de profissionais, mas dão o máximo. 

Um caso assim acaba por, de alguma forma, dar alento?

Dá alento. Nos comentários à notícia, vi alguém perguntar: era esta a MAC que ia a fechar? Isto foi o resultado de um trabalho de verdadeira integração no seio de um centro hospitalar. E avançámos, independentemente de quem acreditava ou não no bom resultado. Segui o bebé todas as semanas e estava otimista.

Vão continuar a seguir este bebé?

Gostávamos muito, até porque é importante do ponto de vista comportamental perceber se há alguma diferença.

O que deseja ao Lourenço?

A melhor sorte deste mundo. É um resistente.

Na MAC terá sempre ‘colo’?

Certamente. Em primeiro lugar das enfermeiras. Todos os dias faziam a palpação do abdómen, diziam que uma vez que a mãe não tinha emoções queriam dar-lhe calor humano. Era uma equipa fantástica. No dia em que o bebé nasceu até lhes disse que depois de semanas tão intensas, certamente iam sentir falta.