Foi o caso mais difícil com que se viu confrontada na sua carreira?
Sim. Foi único e o primeiro. Mas é preciso notar que isto foi um trabalho multidisciplinar. O meu papel foi vigiar a gravidez mas o aspeto mais complexo não me coube a mim: foi sem dúvida manter as funções vitais desta mulher durante tanto tempo.
Lembra-se de quando a chamaram?
Telefonaram-me no dia seguinte a ser declarada a morte cerebral. Na altura pensava-se que era até uma idade gestacional inferior.
Contaram-nos que a barriga não se notava ainda.
Era uma senhora magra, a barriga não se notava. Num primeiro momento, após ser declarada a morte cerebral, foi enviada para doação de órgãos. Sabia-se que havia uma gravidez mas os colegas pensaram que o feto ia deixar de ter funções vitais. Foi em função das avaliações posteriores que se viu que o feto permanecia vivo.
Como reagiram à ideia de prolongar a gravidez?
Pensar numa grávida a funcionar como incubadora do próprio filho é uma situação controversa. Nem toda a gente o aceita. Lá fora, numa última revisão sistemática, houve o registo de 30 casos, de que resultaram 12 nascimentos. Não tínhamos certezas.
Houve resistência?
Não. No serviço, havia essencialmente perplexidade por ser uma decisão de inédita. Como depois de ouvir a família houve uma aceitação de se continuar a gravidez, aquilo que estabelecemos foi que, se houvesse uma situação de perigo extremo, uma paragem cardíaca ou qualquer intercorrência, que a situação pararia ali.
Houve algum momento crítico?
Nunca houve, é extraordinário. Este feto é um resistente, desde o primeiro momento.
Isso surpreendeu-a?
A cada semana que passava, todos nos interrogávamos se ia passar mais uma.
Dormia sobressaltada?
Sim, tinha muitas vezes o telefone na mesa de cabeceira à espera de noticias. Sabíamos que, se acontecesse algum problema antes das 24 semanas, não havia nada a fazer. De resto, esta grávida tinha feito diagnóstico pré-natal e não havia alterações nos cromossomas, portanto o feto tinha um bom prognóstico.
Como se geriu no dia a dia ter uma pessoa que tinha morrido e uma vida a crescer dentro dela?
Penso que foi o aspeto mais importante com a qual equipa se teve de confrontar. Foi uma situação brutal para nós e para a família: ninguém estava à espera nesta família que esta mulher morresse. Quando lhe disseram que o feto estava vivo, a família concordou e assinou os termos de responsabilidade. Sabíamos que havia enormes riscos: infeção, aborto, restrição do crescimento…
Foi um milagre?
Não lhe chamaria milagre. É o resultado da ciência médica moderna, que permite um suporte de vida de tal maneira adequado que torna possível algo assim.
Que imagem vai guardar deste caso?
O que para mim foi mais marcante foi chegar o momento do parto e tirar um bebé com aquela vitalidade, aquele peso, um bebé lindo, rosado e saber que aquela mãe ia ser desligada a seguir.
Chorou?
Não chorei, mas emocionei-me.
Esta mulher foi acompanhada no mesmo serviço de S. José onde, no final do ano passado, morreu um jovem à espera de operação, caso em que se falou de cortes e dificuldades. Que lição se pode tirar?
A medicina não é matemática. O SNS luta atualmente com muitas dificuldades, vivemos uma situação e há um défice de profissionais, mas dão o máximo.
Um caso assim acaba por, de alguma forma, dar alento?
Dá alento. Nos comentários à notícia, vi alguém perguntar: era esta a MAC que ia a fechar? Isto foi o resultado de um trabalho de verdadeira integração no seio de um centro hospitalar. E avançámos, independentemente de quem acreditava ou não no bom resultado. Segui o bebé todas as semanas e estava otimista.
Vão continuar a seguir este bebé?
Gostávamos muito, até porque é importante do ponto de vista comportamental perceber se há alguma diferença.
O que deseja ao Lourenço?
A melhor sorte deste mundo. É um resistente.
Na MAC terá sempre ‘colo’?
Certamente. Em primeiro lugar das enfermeiras. Todos os dias faziam a palpação do abdómen, diziam que uma vez que a mãe não tinha emoções queriam dar-lhe calor humano. Era uma equipa fantástica. No dia em que o bebé nasceu até lhes disse que depois de semanas tão intensas, certamente iam sentir falta.