Os documentos secretos da Nato que Frederico Carvalhão Gil levou para o encontro com o ‘espião’ russo, em Itália, continham informações sobre a área energética. Segundo o SOL apurou, os investigadores estão confiantes de que nos próximos dias lhes será dada autorização, pelo Gabinete Nacional de Segurança, para acederem aos documentos. Isto porque, tendo em conta a natureza sigilosa dos mesmos, estes têm estado vedados aos inspetores da Polícia Judiciária (PJ) e aos procuradores do Departamento Central de Investigação e AçãoPenal responsáveis por este processo.
Os problemas e desafios na área da energia são uma das matérias a que os serviços de informações dão grande importância. Aliás, no relatório de atividades de 2015 divulgado esta semana, o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), sustenta que a segurança energética é um «tema incontornável do contexto geopolítico e estratégico internacional».
Neste primeiro balanço anual público das ‘secretas’, é referido que «assume especial relevo o acompanhamento das principais tendências ao nível dos hidrocarbonetos e das energias alternativas, nomeadamente em termos de comportamento dos mercados, bem como as principais movimentações de atores estatais e não estatais suscetíveis de influenciar o xadrez energético europeu e nacional».
Fonte conhecedora do funcionamento dos serviços de informação explicou ao SOL que esta informação tem, como qualquer outra que tenha o carimbo Nato, grande relevância para a Rússia. Uma outra fonte reforçou que estas informações são fundamentais para a Rússia, numa altura em que ainda existem embargos comerciais e que o país pode tirar proveito dos problemas e dependências energéticas dos países da Nato.
O interesse dos russos neste dossiê poderá ser reforçado pelos acontecimentos dos últimos anos na Ucrânia – que chegaram a levar à suspensão do fornecimento de gás natural. E Portugal não é um mero espetador: no ano passado, o Governo chegou a defender que a Península Ibérica se transforme num hub de gás, com o objetivo de diminuir a dependência energética da União Europeia em relação à Rússia.
Na altura, Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão Europeia e responsável pela União da Energia, mostrou-se satisfeito com a ambição portuguesa: «Queremos diversificação e queremos equilibrar a relação com a Rússia que está agora muito afetada com os eventos no leste da Ucrânia».
Certo é que, dois meses depois destas declarações, a UE, a Rússia e a Ucrânia fecharam o acordo para o fornecimento de gás.
Diz que ia montar um negócio com agente russo
O agente do Serviço de Informações de Segurança (SIS) disse esta semana no Tribunal Central de Instrução Criminal que o encontro em Roma com o congénere russo Sergey Nicolaevich Pozdnyakov aconteceu porque ambos estavam a montar um negócio de exportação de produtos portugueses. Segundo o SOL apurou, garantiu ainda desconhecer que o homem com quem se reunira pertencia aos serviços russos.
As explicações não terão convencido o juiz, nem os dois procuradores da República presentes. E, por isso, o juiz decidiu aplicar a medida de coação mais gravosa: prisão preventiva, com o fundamento de que existe perigo de fuga. Um dos motivos que levou o juiz a invocar esse risco foi o facto de o espião ser casado com uma mulher da Geórgia, que está atualmente no seu país. O espião vive em Lisboa com a sua mãe, mas mantém fortes relações com pessoas do Leste europeu.
Respostas vagas
Apesar de ter decidido a prisão preventiva, o juiz pediu aos serviços prisionais e de reinserção social para fazerem um relatório sobre a possibilidade de Carvalhão Gil passar para prisão domiciliária. Um dos fatores que mais contribuíram para a hipótese de alteração da medida de coação é o receio de que a sua segurança esteja em perigo na cadeia.
Durante cerca de uma hora, período em que esteve no Tribunal Central de Instrução Criminal, o quadro do SIS explicou ao juiz Ivo Rosa e aos procuradores Vítor Magalhães e João Melo, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que estava a planear abrir um negócio com Sergey, um homem que sempre pensou ser empresário russo.
Carvalhão Gil, que deu sempre respostas vagas, esclareceu ainda que conheceu o seu parceiro russo por acaso, num café de Lisboa, numa noite em que foi sair. Depois disso, mantiveram contacto e houve pelo menos mais um encontro, em Liubliana, no final do ano passado.
Esta foi uma das situações em que Carvalhão Gil foi apanhado em contradição relativamente às provas reunidas no processo. É que, durante os vários meses em que foi vigiado, não foram registados quaisquer contactos seus com o alegado «empresário» russo. A investigação acredita, aliás, que os encontros futuros eram combinados no final de cada reunião que tinham, para não haver registos de telefonemas ou de e-mails.
10 mil euros para despesas
Segundo Carvalhão Gil, os 10 mil euros que recebeu do russo durante o encontro num esplanada de Roma – poucos minutos antes de serem detidos em flagrante pelas autoridades italianas – não eram para pagar informações, mas sim as despesas relativas à constituição da empresa que planeavam abrir. Uma das possíveis razões para o valor acordado ser aquele é o facto de dez mil euros ser o máximo legal que se pode transportar em viagens aéreas sem declarar.
Ainda assim, o ‘espião’ português assumiu que tinha documentos secretos da Nato na mochila que levou ao encontro com Sergey. Questionado sobre a coincidência, Carvalhão Gil justificou que costumava levar documentos dos serviços para poder estudá-los mais tarde, em sua casa ou noutros tempos livres. Garantiu ainda que teve acesso a esses documentos no âmbito das suas funções no SIS.
Nas buscas feitas à sua residência de Lisboa, onde vive com a mãe, os inspetores da Polícia Judiciária encontraram mais de 30 mil euros em dinheiro vivo. Dinheiro que o espião acabou por admitir ser dele. Para a investigação, este é mais um indício de que Carvalhão Gil recebia dinheiro pela venda de informações sigilosas. Dinheiro que não depositava, com receio de ser apanhado.
Russo opõe-se à extradição
Carvalhão Gil foi detido a 21 de maio em Roma, numa esplanada do bairro de Trastevere, quando trocava envelopes com Sergey Nicolaevich Pozdnyakov, membro dos serviços russos. O português é, por isso, suspeito de ter praticado crimes de espionagem, violação do segredo de Estado e corrupção.
Poucos dias depois, as autoridades italianas deferiram o pedido de extradição feito por Portugal e Carvalhão Gil chegou a Lisboa no domingo à noite, no último avião da TAP vindo de Roma, sentado na última fila e sob fortes medidas de segurança.
A extradição para Lisboa, à qual o arguido não se opôs, foi decidida em tempo recorde pela justiça italiana, que está ainda a decidir se extradita ou não Sergey Nicolaevich Pozdnyakov – que esta semana foi ouvido num tribunal de Itália e opôs-se à vinda para Portugal. O seu processo pode, por isso, demorar mais um mês até estar concluído. As autoridades italianas pediram, entretanto, mais informações a Portugal para poderem decidir.
As ligações entre os dois homens continuam a ser investigadas, bem como a dimensão das trocas de informações e respetivas consequências. Isto porque o encontro de Roma não foi o primeiro entre Sergey e Carvalhão Gil, além de que parte da documentação da NATO lhe estaria inacessível por ordens superiores. Há, por isso, suspeitas de que teria cúmplices no SIS e noutros serviços, existindo ainda a hipótese de ter obtido dados de outras entidades portuguesas para vender aos russos.
Esta semana em declarações ao jornal i, o advogado de Carvalhão Gil, José Preto, atacou duramente o papel das ‘secretas’ neste caso. «Não li o comunicado daquela coisa [o SIRP], não vou ler o comunicado daquela coisa e é-me absolutamente indiferente o que aquela coisa diga». Concluiu dizendo que não percebe como é que «aquela coisa não foi extinta» ainda, após casos como o que está em julgamento e que envolve o ex-diretor do SIED, Jorge Silva Carvalho.