Lesados do BES à espera das Finanças

Solução implica garantia do Estado a um fundo que vai compensar clientes do papel comercial. Proposta prevê benefícios fiscais para que os reembolsos aos lesados não sejam tributados. Decisão está nas mãos das Finanças e insucesso negocial ainda é um cenário em cima da mesa.

A associação dos lesados do BES (AIEPC) está perto de um acordo que dá à maioria dos clientes um reembolso previsível de 75% dos investimentos feitos em produtos financeiros do grupo de Ricardo Salgado, num prazo entre cinco e dez anos. Os termos gerais da proposta já estão definidos e faltam agora pormenores que dependem do Ministério das Finanças. A solução não prevê custos diretos para o erário público, mas implica garantias do Estado e algum tipo de benefício fiscal para que os reembolsos aos clientes não sejam alvo de tributação no IRS.

A solução prevê a criação de um veículo financeiro que fará um pagamento inicial aos lesados, num montante ainda por determinar. Este fundo de compensação será capitalizado com recurso a diferentes instrumentos, como o Fundo de Garantia de Depósitos, o Sistema de Indemnização aos Investidores ou o Fundo de Resolução. Mesmo o arresto de bens a administradores do BES, determinado no ano passado pelo Ministério Público, poderá ser mobilizado para pagar aos clientes lesados.

Impacto fiscal sob análise

Esta semana decorreu a décima reunião entre a associação dos lesados, o Banco de Portugal, a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários e o representante do Governo. Apesar de já haver um acordo sobre os princípios da solução, falta o aval do Ministério das Finanças, quando receber a proposta de acordo.

Segundo explicou ao SOL fonte envolvida nas negociações, há pelo menos dois pontos em que Mário Centeno terá uma palavra determinante. Por um lado, o projeto de solução tem de ter garantias do Ministério das Finanças. Por outro, tem de ser equacionado o impacto fiscal da proposta.

Em sede de IRS, a associação dos lesados quer acautelar que os reembolsos pagos aos lesados não são considerados um rendimento sujeito a tributação. A legislação fiscal em vigor prevê regimes específicos para as aplicações financeiras. Juros de depósitos, dividendos de ações e rendimentos de obrigações, por exemplo, são taxados a 28%, ao passo que os rendimentos de unidades de participação em fundos de investimento estão isentos.

Segundo explicaram ao SOL, as negociações em curso «estão a trabalhar neste aspeto por forma a obter algum tipo de privilégio» para os lesados do BES a nível de IRS – tal como aconteceu no caso dos clientes do BPP que ficaram a receber pagamentos parcelares através de um veículo financeiro criado para o efeito.

O novo veículo financeiro ficará com os créditos sobre a massa insolvente as empresas do Grupo Espírito Santo (GES). Os direitos judiciais de quem já avançou para os tribunais são cedidos ao fundo, em troca do primeiro reembolso. Depois, à medida que houver decisões dos tribunais, em prazos que se estimam entre cinco e 10 anos, haverá reembolsos adicionais. Este ponto não deverá ser problemático, pois neste momento todos os clientes da associação têm a decorrer ações administrativas contra o Novo Banco, o BES, o Fundo de Resolução e o Banco de Portugal, visando a anulação de todas as deliberações tomadas pelo Banco de Portugal.

Para desbloquear o acordo será essencial determinar o valor do primeiro reembolso – um cálculo que depende de um relatório da Deloitte. Esta consultora foi contratada pelo BdP para fazer um estudo obrigatório depois da resolução do BES. Segundo a legislação do sistema financeiro, os credores de uma instituição financeira não podem suportar mais perdas numa resolução do que as que teriam em caso de liquidação do banco – no sistema financeiro, é uma cláusula conhecida como ‘No Creditors Worse Off’.

Insucesso ainda é possível

Este exercício da Deloitte permite definir quanto é que os lesados do BES teriam direito a receber em caso de liquidação do banco, e em função disso calcular o reembolso inicial do novo veículo. Na versão preliminar do relatório, a consultora defende que os credores do BES devem receber 30% do valor aplicado no antigo banco dos Espírito Santo.

Com este dado em cima da mesa, será possível definir as necessidades de capitalização do novo fundo e de reembolsos por escalões de investimento. Até agora trabalhou-se apenas com base em «cenários que discriminam positivamente os escalões mais baixos»: 100 mil, 200 mil e 300 mil euros.

A reunião de ontem será uma das últimas a ter lugar. «O processo está na reta final». Mas isso não implica a garantia do sucesso, frisa a mesma fonte. Se a resposta das Finanças e a versão final dos montantes a pagar não agradarem à maioria dos lesados, «o insucesso do diálogo em curso ainda é uma possibilidade». E, nessa eventualidade, «a litigância contra todas as entidades que venham a ser definidas pela equipa de Contencioso aliada a outras formas de luta e de protesto serão a alternativa».

Em que ponto está a negociação dos lesados do BES?

Há já  um montante global de reembolsos acordado?

Ainda não, e poderá não vir a haver. O modelo de solução que está a ser trabalhado não parte do pressuposto de que há um ‘bolo’ a ser repartido por determinados escalões/critérios, e sim de critérios abertos a futuros possíveis recebimentos, independentemente de uma base inicial assegurada.

Que percentagens de recuperação é que estão a ser propostas?

O grupo de trabalho tem funcionado com base em cenários que não são certos nem definidos. O valor de que se falou, nos cenários abordados nas reuniões, foi de 75% para os montantes mais baixos.

Então já existem escalões de reembolsos?

Ainda não existem estas categorias quantitativas de valores. A associação tem trabalhado com base em cenários com o BdP, a CMVM e o Governo. Estes descriminam positivamente os escalões mais baixos  de investimentos em produtos do GES – 100 mil, 200 mil e 300 mil euros -, mas implicam sempre perdas para todos eles. Acima daqueles valores, poderá também existir solução, mas os montantes propostos poderão ser de tal forma reduzidos que na prática poderão inviabilizar aceitação da mesma.

Caso os detentores de investimentos mais elevados não aceitem o acordo, o que pode ser feito?

Resta a litigância contra todas as entidades que venham a ser definidas pela equipa de Contencioso que está a trabalhar com a associação. Outras «formas de luta e protesto» poderão ser a alternativa.

Foram definidos prazos de pagamentos?

Não. Nos cenários até agora trabalhados poderão chegar aos 10 anos.

A aceitação do acordo é feita em assembleia-geral da associação dos lesados?

Na prática, o processo não decorre dessa forma. A decisão será sempre individual de cada titular de aplicações do GES, e não da associação ou da sua assembleia-geral – cerca de 50% do universo dos titulares de papel comercial nem sequer é associado da AIEPC. A decisão de aceitação ou não da mesma é estritamente individual. Aos clientes que decidirem não aceitar será apresentada uma estratégia de contencioso alternativa. Nenhuma assembleia-geral tem o poder de limitar a capacidade e direito individual de aceitação (ou não) de uma proposta.

Mas então será necessário um número mínimo de aceitações para avançar?

Algum tipo de valor mínimo será necessário. Não deverá andar  longe de 80% dos lesados ou de 50% do capital.

No caso de existirem perdas, quem aceitar a solução desiste de recuperar o resto do capital em falta?

É um dos pontos que não estão fechados em definitivo, embora a a solução tenha implícita a renúncia a ações judiciais contra BdP, Fundo de Resolução, Novo Banco, CMVM e outras equivalentes.

Se o Governo der aval à solução, o que acontece a seguir?

O tempo de implementação de uma qualquer solução que venha a ser encontrada nas próximas semanas demorará sempre alguns meses a ser concretizada, face à sua complexidade jurídica e operacional. Calcula-se entre três e seis meses o período necessário para operacionalizar o novo fundo.