O Reino Unido vai mesmo sair da União Europeia. Leu bem, caríssimo leitor: o Reino Unido iniciará dentro de dias o processo conducente à sua saída da União Europeia. Não, não está apenas a ter uma alucinação ou mesmo um pesadelo. Ao contrário do que foi sugerido por várias sondagens e por projeções sucessivas avançadas pelos órgãos de comunicação social britânicos, eis que os eleitores do Reino Unido decidiram, por uma maioria razoável, dizer “goodbye” a Bruxelas.
Vivemos, pois, hoje um momento histórico: é o fim de um ciclo político da História europeia e, logo, da Humanidade (a Europa – o continente europeu e o projeto político-institucional baseado na solidariedade e na cooperação dos Estados europeus – foi e é fulcral para o progresso da nossa civilização, a qual não é ocidental, nem oriental: é uma civilização humana). E o princípio de um outro ciclo, de uma nova ordem mundial. Se é já certa a saída do Reino Unido, se já é certa a volatilidade que o Reino Unido – e, por contágio inevitável, a Europa e o Mundo – sofrerá ao nível financeiro e até económico, pelo menos, no curto prazo – é totalmente incerto qual será e em que termos se desenrolará o novo ciclo político na Europa. O “Brexit” é mais um passo, firme e seguro, no caminho do abismo da União Europeia.
Dito isto, como justificar a decisão da maioria do eleitorado britânico? Julgamos que a vitória do “Brexit” se deve a cinco razões fundamentais:
i) O descontentamento de um amplo setor da sociedade do Reino Unido face à classe política dirigente e, especificamente, face à inação do Governo liderado por David Cameron. A economia britânica não cresce como expectado; o desemprego regista valores assustadoramente elevados para os padrões (e hábitos) britânicos; o Reino Unido sofre uma crise de identidade e de afirmação da nação no mundo. Os cidadãos britânicos – quer sejam de esquerda, quer sejam de direita – comungam de um valor: o nacionalismo arreigado, um sentimento de superioridade face às restantes nações – e a crença inabalável de que sozinhos são imponentes no mundo; acompanhados (no seio da União Europeia) são impotentes no mundo. A culpa da crise – de identidade, económico-financeira, e sobretudo social – é da União Europeia, da burocracia de Bruxelas. Sair da estrutura pesada e “autoritária” da União é, pois, o primeiro passo para a “reconquista” do orgulho, da influência e do dinheiro. Isto mostra que não são apenas os eleitores portugueses a confundir atos eleitorais e respetivos significados e funções;
ii) A inabilidade de David Cameron e as divisões internas no Partido Conservador. Associado ao primeiro ponto, o atual Primeiro-Ministro (que tem vindo em linha descendente desde o escândalo dos “Panama Pappers”, pese embora ser o único Primeiro-Ministro na história democrática britânica a revelar os seus rendimentos, na integralidade) revela, neste seu segundo mandato, uma oscilação estratégica e uma confusão tática que indiciam fim de ciclo. David Cameron, após ter obtido uma maioria absoluta nas eleições legislativas, optou por reforçar a ala dos tories que lhe é mais hostil – a qual coincide com a linha mais dura, mais conservadora, mais ideológica – , convocando o referendo de ontem. E sabendo que o cenário de derrota se apresentava como bastante realista. Depois, não obstante ter sido o autor material ou o ideólogo, da convocação do referendo, David Cameron foi o principal rosto da campanha pelo “Bremain”, ou seja, pela permanência do Reino Unido na União Europeia. Na verdade, David Cameron nunca soube explicar suficientemente bem aos eleitores britânicos o que estava em causa: a permanência na União Europeia foi sempre assumida como um facto natural, imposto pela “natureza das coisas”; todavia, nunca suscetível de perder a soberania britânica e os poderes económicos e financeiros do país. Isto é:o Reino Unido exigia um tratamento especial, mesmo que os seus eleitores decidissem permanecer entre os Estados-Membros. Cameron foi desta forma o que tem sido neste seu segundo mandato: um líder temeroso disposto a agradar a gregos e a troianos, leia-se, a europeístas (defendendo continuidade na União Europeia) e a eurocéticos (defendendo uma negociação inteligente, a revisão dos tratados e a exclusão do Reino Unido de uma série de matérias em que a União se encontra legitimidade a intervir). David Cameron só se poderia naturalmente demitir, devendo o Partido Conservador apresentar um novo líder que desempenhará as funções de Primeiro-Ministro;
iii) A união (outrora estranha, hoje cada vez mais natural) entre a esquerda e a direita mais ortodoxa. Curioso notar que a ala mais à esquerda do atualmente muito esquerdista Partido Trabalhista – desde que Jeremy Corbin assumiu funções, este partido assemelha-se perigosamente do Bloco de Esquerda – assumiu uma posição muito veemente contra a permanência do Reino Unido na União Europeia. Argumento: as políticas de austeridade da União são sistematicamente contra a classe trabalhadora. A permanência seria o fim da esquerda e um duro golpe no sindicalismo – a saída, por outro lado, representa uma oportunidade dourada para o renascimento dos trabalhistas e dos sindicatos que os apoiam;
iv) O medo da insegurança e do terrorismo, afinal, levou à votação no “Brexit”, ao contrário do que se esperava, sobretudo após o homicídio da deputada trabalhista Jo Cox – o que mostra que os britânicos julgam que resolvem melhor os problemas globais sozinhos, sem interferência de terceiros. Enfim, consideram que medidas restritivas quanto à imigração são mais eficazes que a partilha de informações e o aumento do grau de eficiência dos serviços de informação e segurança;
v) A perspectiva de que a saída da União Europeia será a pedra de toque para a divisão do Reino Unido: verifica-se uma desagregação latente (que é desejada por muitos setores) do Reino Unido. O Reino Unido, tal como o conhecemos hoje, dificilmente se manterá como realidade política unitária. Nos próximos tempos, veremos novamente o recrudescimento das pretensões de independência da Escócia e talvez até do País de Gales, para além do retomar das discussões (esperemos que sem violência) sobre o problema da unidade/independência da Irlanda. O Sinn Féin já veio publicamente congratular-se pelos resultados, avançando que será uma excelente oportunidade para se discutir a unidade da Irlanda…
Em suma: mais do que uma vitória do “Brexit” – foi uma derrota dos defensores do “Bremain”, pela sua incapacidade de desmontar os mitos e as ideias enviesadas (embora meticulosamente construídas para fins eleitorais) dos defensores da saída. O argumento da banana – segundo o qual, a União Europeia só serve para aprovar regulamentações ridículas, com influência directa na iniciativa privada e na liberdade de empresa dos britânicos, dando como exemplo os regulamentos sobre o tamanho e o tipo de bananas – avançado por Boris Johnson foi muito eficaz.
Boris Johnson que será muito provavelmente o próximo Primeiro-Ministro do Reino Unido. Para ele, o “brexit” foi uma jogada de génio – uma verdadeira banana split.