Os comentários relativos à constituição da Comissão de Inquérito parlamentar, por iniciativa do PSD, têm surpreendido. Pela sua incoerência e, por vezes (vezes demais!) um certo facciosismo. Facciosismo, esse, que prejudica largamente a qualidade da nossa democracia. Para muitos, importa mais alinhar com o discurso oficial – ou oficioso – do partido, ou do quadrante político em que se inserem, do que defender o interesse de Portugal e o direito dos portugueses à transparência e ao conhecimento efectivo das decisões do poder político.
Há que não ter rodeios, nem hesitações na verdade: a reacção da esquerda à proposta do PSD – subscrita e devidamente acompanhada pelo CDS/PP – é bizarra. Bizarra, porque, ao longo dos últimos anos, foi praticamente sempre a esquerda a provocar os inquéritos parlamentares e a exigir intensas investigações aos actos dos sucessivos Governos. Foi, aliás, o Bloco de Esquerda que – desde a sua fundação – criou na política portuguesa o hábito da suspeição permanente. A suspeição, a desconfiança , o ataque moral a todos os políticos e empresários (sem excepção, para além dos seus camaradas) como mode de estar, ser e fazer política. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Mudam-se as conveniências, mudam-se as convicções.
Com efeito, mudou a posição relativa do Bloco de Esquerda no quadro político português – mudou a sua posição sobre a ética, a moral e a hombridade no exercício das funções públicas. Afinal, para a talentosa Mariana Mortágua e companhia, se for o PSD ou o CDS a decidir, é mal decidido, sendo uma cedência intolerável à ganância e à corrupção; se for o PS – seu novo querido amigo, quase amante – é bom e apenas a manifestação da prossecução do interesse público.
Veja-se o que afirmou Mariana Mortágua, em entrevista ao “i” deste fim-de-semana: a Caixa Geral de Depósitos actuou muitas vezes contra o interesse público, as suas sucessivas administrações cometeram erros lesivos do erário público – mas uma Comissão de Inquérito poderia levar os portugueses a pensar que o banco público é tão mau como um banco privado. E isso não pode ser de forma alguma: mais vale manter os contribuintes portugueses na ignorância. Em alternativa, Mortágua propõe uma auditoria independente ao passado da Caixa. Como é? Então uma comissão parlamentar de inquérito é perigosa porque vai revelar aspectos perniciosos que mais vale manter os portugueses na ignorância – já uma auditoria não suscita qualquer problema. Mas uma auditoria supostamente independente não deveria fiscalizar as contas da Caixa Geral, estudar a conformidade das suas decisões com o bloco de legalidade, incluindo o respeito pelo princípio da prossecução do interesse público e da eficiência administrativa?
A não ser que Mariana Mortágua (pela qual temos muita estima, até porque descobrimos hoje que nascemos no mesmo dia, 24 de Junho) queira uma auditoria tão independente como algumas que foram realizadas ao BES, mesmo antes do seu colapso…Ou seja: uma auditoria independente; mas devidamente controlada pelo PS e pelo BE. Uma auditoria à geringonça. Uma auditoria animada pelo espírito da geringonça. Uma auditoria independente devidamente dependente da geringonça.
Por outro lado, o objecto desta Comissão de Inquérito enquadra-se, sem qualquer dúvida, na competência desta comissão ad hoc , tal como prefigurado na Lei dos Inquéritos Parlamentares (artigo 8.º). No entanto, pese embora Eduardo Ferro Rodrigues peque por ser demasiado parcial vezes demais, no exercício da suas funções, a verdade é que as suas dúvidas legais sobre a admissibilidade do objecto da Comissão, tal como definido por PSD e CDS, eram justificadas. Aqui, os deputados do PSD – Luís Montenegro e António Leitão Amaro – e do CDS – Adolfo Mesquita Nunes – cometeram um erro de palmatória e dificilmente compreensível.
Então não é que estes deputados – todos inteligentes e com conhecimentos jurídicos suficientes – foram definir o objecto da Comissão como sendo a “apreciação do processo em curso pra a recapitalização do banco público”? É que, nestes termos, Eduardo Ferro Rodrigues tinha razão nas suas dúvidas jurídicas. De facto, a Comissão de Inquérito não pode visar o apuramento do processo decisória de uma decisão do Governo em curso – aí o Parlamento deveria simplesmente exercer a sua função de controlo político, suscitando a questão nas reuniões plenária ou interpelando o Ministro das Finanças ou mesmo ouvindo-o na especialidade. Caso contrário, estaríamos perante uma flagrante violação do princípio da separação de poderes.
Luís Montenegro e demais deputados rectificaram, depois, o erro, redefinindo o objecto da Comissão nos seguintes termos: “ avaliar os factos que fundamentam a necessidade da recapitalização da CGD , incluindo as efectivas necessidades de capital e de injecção de fundos públicos e as medidas de reestrutuação do banco”. Muito bem – assim, não há margem para qualquer dúvida sobre a admissibilidade jurídica da Comissão de Inquérito à CGD. Esperamos, pois, que Eduardo Ferro Rodrigues desista do pedido de parecer feito junto da Procuradoria-Geral da República – ou, se Ferro Rodrigues persistir por razões político-partidárias, que a Procuradoria se abstenha de se pronunciar sobre o mérito da questão formulada, na medida em que o objecto se modificou. PSD e CDS já alteraram a definição do objecto da Comissão.
Enfim, resta dizer que é incompreensível o argumento de que o Parlamento não deveria constituir um comissão de inquérito a um banco. Perguntamos: o dinheiro que os contribuintes desperdiçam com a CGD é diferente do dinheiro que os contribuintes vão (ou podem ) perder co o BES, BANIF ou BPN? Um dinheiro vale mais do que o outro?
Em segundo lugar, o poder parlamentar de inquérito é uma manifestação da dimensão parlamentarista do nosso sistema de Governo. É um traço próprio dos regimes parlamentaristas. Dimensão parlamentarista , essa, que permitiu a António Costa exercer as funções de Primeiro-Ministro, mesmo tendo perdido as eleições legislativas. Dimensão parlamentarista, essa, que permitiu a formação e vai permitindo a subsistência da geringonça.
E acaso não foi António Costa, que na moção apresentada no último Congresso do PS, classificou o nosso sistema de Governo como sendo parlamentarista – e não semipresidencialista (embora seja um erro crasso de Direito Constitucional e Ciência Política – sabendo que Costa teve 17 valores, com Marcelo Rebelo de Sousa em Direito Público Comparado, só podemos concluir que o Professor Marcelo não lhe perguntou a diferença entre um sistema parlamentarista e um sistema semipresidencialista…)? Então, aí está: António Costa está a vivenciar o seu parlamentarismo…