Otelo Saraiva de Carvalho, que defrontou duas vezes Ramalho Eanes em eleições presidenciais, de 1976 e de 1980, fala hoje dele como «um excelente Presidente da República, dentro daquele seu formalismo, de rigor regulamentar», embora tivesse desejado que em algumas ocasiões o general tivesse tido «maior audácia».
«Agarrou-se firmemente à Constituição da República, promulgada por Costa Gomes (abril de 1976). Nada do que era diploma legal (do Governo ou do Parlamento) passava sem o crivo da constitucionalidade. Tudo tinha de observar o rigor constitucional. Foi, no exercício do cargo, um homem de grande imparcialidade», diz Otelo ao SOL, que o convidou a recordar como foi, a 27 de junho de 1976, há 40 anos, a eleição de Eanes para Belém – as primeiras presidenciais no pós-25 de Abril.
«Defrontámo-nos como adversários. Eu tinha um handicap com ele, pois, na sequência do 25 de Novembro de 1975, tinha sido preso por ordens dele. Estive preso 44 dias (entre meados de janeiro e início de março desse ano)», recordou.
Otelo reconheceu também que Eanes «tinha ganho um grande prestígio enquanto comandante das operações que culminaram com o 25 de Novembro (apontado como o momento do restabelecimento da ordem nas Forças Armadas), ascendendo a chefe do Estado Maior do Exército, graduado em general de quatro estrelas».
Apoiado por militares e quase todos os partidos
«O Eanes foi também o homem indicado pelo Grupo dos Nove (que integrava nove conselheiros da Revolução: Vasco Lourenço, Canto e Castro, Victor Crespo, Costa Neves, Melo Antunes, Victor Alves, Franco Charais, Pezarat Correia, Sousa e Castro). Era um grupo com grande peso na instituição e na política. Foi a partir dele que se estancou a revolução popular em marcha, impondo um regresso ao programa político original do Movimento das Forças Armadas, que apontava para a implantação da democracia e liberdade», continuou.
Aliás, acrescenta Otelo, «é a partir desse grupo que nasce o apoio à candidatura de Eanes à Presidência, vontade mais tarde acolhida pelas principais forças partidária da época: PS, PSD e CDS. Ficaram reunidas todas as condições para vencer as eleições logo à primeira volta».
Otelo Saraiva de Carvalho guarda ainda na memória um episódio vivido na RTP, em plena campanha eleitoral, durante um debate entre os quatro candidatos – ele próprio, Eanes, o almirante Pinheiro de Azevedo e o candidato do PCP, Octávio Pato -, moderado por Joaquim Letria.
«Antes do início do debate, quando me dirigia ao gabinete de maquilhagem, cruzei-me com Eanes que, de pronto, atirou: ‘Ouve lá porque é que te candidatas a Presidente?’. Ao que eu respondi: ‘Para expor as minhas ideias. Interessa-me saber o que é que elas valem’».
‘Não te preocupes, vais ganhar’
Nunca mais esqueceu o que Eanes ripostou: «Se tu não apresentasses a tua candidatura, vencia ainda mais folgado e podíamos caminhar para o socialismo». Mas a memória da sua resposta também ainda está bem viva: «Não te preocupes, vais ganhar estas eleições. Só quero vencer o Octávio Pato. Estou seguro de que vences à primeira volta».
E assim aconteceu: Ramalho Eanes juntou 2,9 milhões de votos (61,59%), contra 792.760 (16,46%) de Otelo Saraiva de Carvalho, 692.147 de Pinheiro de Azevedo (14,37%) e 365.586 (7,59%) de Octávio Pato. A percentagem de votos conquistada por Eanes foi a segunda mais elevada na história das eleições presidenciais, só suplantada por Mário Soares em 1991 (70,35%).
Eanes venceu em todos distritos, à exceção de Setúbal, onde a vitória sorriu a Otelo, candidato apoiado pela extrema-esquerda.
Hoje coronel na reserva, Otelo lembra que Eanes, como Presidente, manteve depois «vários confrontos com o então primeiro-ministro Mário Soares, que por vezes tentava exceder a Constituição». Mas defende que «nunca excedeu as suas funções»: «A forma como exerceu o cargo fez dele um excelente Presidente. Granjeou um prestígio muito grande, alcançou muito mérito. Foi o primeiro Presidente eleito democraticamente após o 25 de Abril. Podia ter tido maior audácia. Mas nunca tomou decisões além daquilo que a Constituição permitia. Acredito que tivesse outros sonhos, mas resguardou-se sempre no texto constitucional. Orgulho-me de ser amigo de um militar com o perfil de Eanes», adiantou.
Aquele que é apontado por muitos como o estratega das operações militares do 25 de Abril, recorda ainda alguns momentos das segundas presidenciais, em dezembro de 1980.
«Não me esqueço de ter dado o meu voto a Eanes, apesar de também ser candidato. Eanes estava num confronto direto com um outro general, Soares Carneiro, um homem com um perfil político maligno. Toda a esquerda votou Eanes. Uma vez reeleito, repetiu, de novo, um excelente mandato», defende.
Por mais de uma vez ao longo da conversa com o SOL, Otelo fez questão de reforçar que é «amigo do general»: «É um amigo pessoal desde há muitos anos. Tenho por ele uma altíssima consideração. Conheci-o era eu ainda cadete na Escola do Exército, já era apontado como exemplo e como um futuro excelente oficial».
Recordou, a terminar, um episódio relacionado com um autointitulado congresso dos combatentes, nos idos de 1973. Estava então em comissão na Guiné, mas lembra-se que, entre os oficiais que assinaram um documento a contestar a realização daquele encontro destinado a enaltecer o regime colonial, estava a assinatura do major Ramalho Eanes, então colocado em Lisboa. «Teve a honra e o mérito de ser um militar de Abril».