Nostalgia da Bossa Nova

No 25.º aniversário da edição original brasileira, a história da Bossa Nova chegou a Portugal. Ruy Castro é o mestre da cerimónia.

Então, foi assim. Ruy de Castro explica que a raiz daquilo tudo surgiu sob a forma de ondas sonoras, libertadas sem sossego no final da década de 1940 por um altifalante encavalitado num poste de Juazeiro por Emicles, dono da emissora radiofónica daquela terriola de 10 mil habitantes do sertão da Bahia. O gosto eclético de seu Emicles, que incluía no repertório temas e canções de Orlando Silva, Dorival Caymmil e Dick Farney a Carmen Miranda ou Charles Trenet, modelou o ouvido do jovem Joãozinho da Patu, filho de vocação tresmalhada de um comerciante católico e o futuro João Gilberto, o pai da Bossa Nova. O relato começa mesmo com um caso lateral de adultério, difamação e ajuste de contas motivado pela emissora, uma historinha menor, se não fosse desses pormenores exaustivamente investigados e deliciosamente descritos e compostos que vive a arte de escrever biografias de Ruy Castro. Esta foi primeiro editada em 1990 e teve sucesso monstruoso no Brasil e grande repercussão no estrangeiro (dando um impulso quase tão importante ao retorno do interesse pela Bossa Nova como o álbum de estúdio gravado por Tom Jobim e Frank Sinatra em 1967). Chama-se Chega de Saudade, título da canção revolucionária escrita por Jobim e gravada pela primeira vez em 1958, e faz a história e histórias da bossa nova (subtítulo) a partir do perfil coletivo do grupo de compositores e cantores que criou o mais internacionalizado género da MPB (música popular brasileira), centrado na figura de João Gilberto.

Chega de Saudade foi a rampa de lançamento para a fama do jornalista Ruy Castro (n. 1948, Cataringa, Minas Gerais) como excecional biógrafo (também de Carmen Miranda, de Mané Garrincha, em Estrela Solitária, e de Nelson Rodrigues, em O Anjo Pornográfico, e mais recentemente do género samba-canção, em A Noite do Meu Bem, de 2014) e depois como autor de livros de ficção, humor e ensaio (destaque para Tempestade de Ritmos, sobre música popular, e O Leitor Apaixonado, sobre literatura). O seu estilo como biógrafo conjuga o método jornalístico, a pesquisa exaustiva do painel de enquadramento como dos detalhes comezinhos e o apuramento literário, temperado pelo humor e por uma paixão especial pelas décadas de 1950 e 1960. Castro insere-se numa importante linha de escrita de biografia no Brasil, em que se destacaram, e vale a pena procurar e ler, os contributos de Alberto Dines (Morte no Paraíso, de 1981, sobre Stefan Zweig, ou Vínculos do Fogo, de 1992, sobre António José da Silva, o Judeu), Fernando Morais (Olga, de 1985, sobre a judia alemã Olga Benário Prestes, entregue por Getúlio ao regime nazi e falecida num campo de concentração), Zuenir Ventura (O Ano Que Não Terminou, de 1998, sobre o Maio de 68 brasileiro, ou Chico Mendes, Crime e Castigo, de 2004) e Benjamin Moser (Clarice Lispector: Uma Vida, 2009) ou o projeto editorial Camisa 13 (lançado pela Ediouro em 2004) sobre os 13 principais clubes de futebol brasileiros.

Chega de Saudade lê-se como um romance e cada página é uma delícia de informação e tempero. Explica como a Bossa Nova nasceu do porão do primeiro fã clube carioca, o Sinatra-Farney, ou das tertúlias acesas da sobreloja da Murray, a maior importadora de discos da cidade. Como os Garotos da Lua convidaram João Gilberto para “cantar feito peste” e “tocar violão direitinho” com eles e depois o despediram, e ele foi então gravar o primeiro disco a solo, recebido com indiferença mas já com tudo para ficar na história da Bossa como a chave de ouro do movimento. Nas 300 páginas seguintes, multiplicam-se os episódios e as personagens (Tom Jobim, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Carlinhos Lyra, João Donato, Sylvinha Telles, Newton Mendonça, Nara Leão, Johnny Alf, Bebeto, Vinicius de Morais, Elis Regina…) e comove a atenção dada ao encontro entre elas, a filigrana de que é feito o cometa que explodiu em 1959 e arrasou a Zona Sul do Rio até um certo encontro na boate Au Bon Gourmet, em que primeiro se ouviu ‘Garota de Ipanema’ e logo se começou a esgotar o pó de estrela.

Em 2001, Ruy Castro seguiu o trilho do best seller Chega de Saudade e da recolha de textos Ela É Carioca: uma enciclopédia de Ipanema (de 1999) e lançou A Onda Que se Ergueu no Mar: novos mergulhos na Bossa Nova, coletânea de reportagens e artigos sobre ambientes e acontecimentos ligados ao movimento, desde o verão passado por Brigitte Bardot em Búzios, em 1964, até aos últimos dias de vida de Dick Farney ou Lúcio Alves, os ídolos incontestados da MPB dos anos 40 que “morreram tristes, abandonados pelas gravadoras, afastados do público”. Em 2003, saiu Carnaval no Fogo: crônica de uma cidade excitante demais, um retrato afetivo do Rio e do carioca, esse sujeito com “uma recusa quase carnívora a se levar muito a sério, uma combinação de tédio e deboche diante de qualquer espécie de poder e, não por último, uma joie de vivre que desafia os argumentos mais racionais”. Em todos estes registos, e no essencial da escrita biografista de Ruy Castro, a personagem central é a nostalgia, lânguida e choradinha, sussurrando que chega de saudade enquanto espera a volta do passado. No caso da Bossa Nova, ela “voltou mais uma vez para ficar para toda a vida” (Vinicius).

Chega de saudade

Ruy de Castro

Tinta da China

492 págs., 24.90 euros