Descalça, sorridente e faladora, assim surge Sónia Braga. Estamos em Cannes, mas a atriz mostra-se tão à vontade que esta suíte de hotel poderia ser uma divisão da sua casa ou uma esplanada de praia em Recife. Mal a cumprimentamos dá para entender que, na verdade, a estrela brasileira é bastante mais baixa do que as pernas morenas de Gabriela faziam prever: não chega a medir sequer 1,60 m.
A entrevista tem como pretexto o aclamado “Aquarius”, do brasileiro Kléber Mendonça Filho, após a exibição na Seleção Oficial para a Palma de Ouro. No filme, Sónia é Clara, a derradeira habitante de um edifício antigo na Avenida Boa Viagem, a marginal de Recife, que começa a ser pressionada por uma companhia imobiliária para vender o seu apartamento, de forma a abrir espaço para mais um arranha-céus. Filme de memórias, leva-nos a viajar pelo passado através de uma banda sonora que funde Queen com Gilberto Gil e quase nos envergonha ao fazer-nos chorar com Roberto Carlos.
Apesar de viver há muitos anos nos EUA, este filme sobre o Brasil parece tocá-la de uma forma muito pessoal. Essa sensação corresponde à realidade?
Veja bem: a Clara [a personagem que interpreta] e eu somos da mesma idade e temos mais ou menos o mesmo gosto. E a mesma visão sobre as coisas. De certa forma, o oposto do que acontece com o Humberto Carrão, o ator a quem cabe o papel mais negativo no filme. A personagem dele sabia exatamente o que fazer para magoar a Clara, mas o Humberto é das pessoas mais adoráveis que conheço.
Houve uma cena em que chorei ao som de uma música de Roberto Carlos…
Pois é, a música faz-nos isto. É um momento em que a Clara está muito abalada, mas coloca o disco do Roberto Carlos (“O Quintal do Vizinho”) e tudo serena… Até estou a sentir arrepios. Este filme é uma viagem no tempo. Mas não é apenas sobre o passado, porque quando termina mostra-nos também o futuro. Nesse sentido, é bastante violento.
Já tinha visto “Aquarius” antes de chegar aqui a Cannes?
Não, vi apenas aqui. Foi maravilhoso, até porque aconteceu algo muito estranho. Senti-me como se estivesse numa salinha de projeção pequenina com a equipa. Só quando o filme terminou eu percebi que estávamos em Cannes!
Quanto de si colocou nesta personagem? E pergunto isto porque sentimos que grande parte é você mesma…
Se fui eu que interpretei a personagem, espero que tenha colocado 100%. Até porque nunca deixo o meu fígado em casa quando saio. Quando interpretamos uma personagem levamos tudo de nós, o corpo, o cérebro e entregamos tudo ao realizador, ao fotógrafo. Quando saltamos vai tudo connosco. Só esperamos que alguém nos apanhe.
Houve algum salto em que alguém não a tenha apanhado?
Sim, houve um, por isso acordei no hospital (risos)… Metaforicamente falando, claro. Sabe, por vezes acontece estarmos tão ligados à equipa que fazemos o salto e se a pessoa responsável não nos apanha, pensamos que talvez haja outra pessoa para nos apanhar. Por isso, quando fazemos um filme temos de ter esta ligação com todos.
Em que filme foi isso?
Foi numa novela, não num filme. Mas foi uma lição para aprender.
Pode dizer o nome da novela?
Prefiro não divulgar, para não ferir suscetibilidades. Mas fiquei muito surpreendida por isso acontecer. Quando algo assim sucede, é como quando temos acidentes estúpidos – como aconteceu quando vinha para cá. Estava em Nova Iorque e choquei contra um vidro num restaurante. Estava com a Maeve [Jinkins, que interpretou Domingas na novela “A Regra do Jogo”]. Nessa altura, disse-lhe que queria sair dali para não embaraçar ninguém. “Temos de voltar porque o seu nariz está a sangrar”, disse-me ela… Nem queria acreditar.
Quando vi a Clara ainda jovem não pude deixar de ver Gabriela. Só lhe faltava o cabelo comprido, aquele vestido florido e, claro, estar descalça, algo que, pelo que vejo, é um hábito que mantém. Como lida com esta viagem a um tempo em que era mais conhecida enquanto Gabriela do que enquanto Sónia Braga? Imagino que toda a gente lhe faça essa pergunta…
Não, ninguém me perguntou nada sobre a Gabriela.
Em Portugal, a exibição dessa telenovela teve uma grande importância. Estávamos a sair de uma ditadura e foi um verdadeiro sinal de liberdade…
Ah, muito obrigado por essa imagem. Na verdade, essa novela foi um fenómeno tanto no Brasil como em Portugal. Sabe, eu não frequentei nenhuma escola de representação. Nem sei como permitiram que isso acontecesse.
Como foi então o seu início neste meio?
Comecei a trabalhar aos 14 anos. Não percebia nada de filmes, mas adorava as câmaras. Sobretudo as câmaras fotográficas. Por vezes, os meus colegas e realizadores ainda ficam irritados comigo quando eu digo “não sou uma atriz, sou uma pessoa que gosta de artes visuais”. Não gosto dessa separação que se faz entre equipa técnica e atores. Toda a vida fui assim. Não gosto só de ver o que fazem, gosto também de participar.
Porque queria ser atriz com essa idade?
Eu não queria ser atriz. Vou contar-lhe uma história muito brasileira. A minha família pertencia a uma classe média alta. Mas no dia em que o meu pai morreu ficámos sem nada. A minha mãe era uma excelente figurinista e dona de casa e não participava em nada da vida e dos negócios do meu pai. Por isso ficou sem nada e com sete filhos para cuidar. Como não tínhamos dinheiro, mudámos de um bairro bom para outro bem mais pobre.
E já representava em casa?
Não. Pelo menos não assim. Acontece que o meu irmão mais velho é gay e muito bonito. Como naquela altura o ambiente gay no Brasil era muito artístico, ele entrou numa universidade e começou a ser ator e um dia um realizador precisava de uma princesa e o meu irmão sugeriu-me a mim. Quando recebi o dinheiro por esse papel era mais do que a minha família toda junta ganhava num mês.
Gostou dessa sensação?
Eu gostei dessa sensação! Posteriormente, percebi o valor do dinheiro na família. Entretanto comecei a poder andar mais com os colegas do meu irmão, alguns deles realizadores que gostavam muito de mim e começaram a pedir-me para fazer mais coisas. Por isso, deixei de ir à escola aos treze anos e aprendi por mim. E com as outras pessoas.
Quer isso dizer que não acalentava o sonho de ser atriz?
Não, mas gostava de ver filmes. Quando tinha uns quinze anos, andava com um grupo de pessoas e víamos muitos filmes, desde o Bergman, Godard e outros. Fui picada por esse vírus do cinema ainda muito jovem. Mas também pelo da fotografia e da moda. Foi um período muito fértil na minha vida em que comecei a ir muito ao cinema e a fazer teatro. Tive um grande mentor, que me adotou por eu ser muito intuitiva, Ademar Guerra. Era um realizador e encenador que todos temiam. Nessa altura, ele dirigia os atores mais famosos do Brasil, mas eu enfrentava-o e ele achava-me graça.
Sempre foi assim desbocada, a dizer aquilo que pensava, mesmo quando trabalhou nos Estados Unidos em grandes produções?
Sim. Quando estava a trabalhar com o Clint Eastwood, em “Rookie” (1990), um dia fui ter com ele e perguntei-lhe se poderia propor-lhe uma coisa. Como ele disse que sim, eu perguntei: “Será que posso cortar todos os meus diálogos?”. E como o Raul Julia era um homem muito alto, acrescentei: “Posso ser o guarda-costas do Raul”. E não é que o Clint adorou a ideia? Infelizmente, digo a toda a hora aquilo que quero dizer, mas também aquilo que não devo dizer.
Não me parece que a idade seja para si um problema, estou certo?
Ainda no outro dia estava a lembrar-me de todas essas perguntas que me fazem sobre a idade. Sabe que idade tem uma árvore? Tanto pode ter uns cinco, dez anos, como pode ter 300 anos! E quando nos apercebemos dizemos: “Bolas, é tão bonita!”.
Se calhar já lhe fazem estas perguntas desde os tempos de “Gabriela”, não?
Sim, aos 24 anos perguntavam-me como é que eu lidava com a ideia de estar a ficar mais velha. Aos 24 anos?! Depois, aos 31, já estava acabada, e perguntavam-me o que gostaria de fazer quando fosse ainda mais velha. Eu apenas dizia que esperava ficar cada vez mais velha. Será que existe alguma outra escolha na vida?
Este é também um filme que fala da beleza interior de cada pessoa. A sua personagem sofre uma mastectomia, que é mostrada numa imagem muito bela e natural…
Sim, é verdade, não costumamos ver isso na tela. Mas o Kléber mostra até a fralda suja de cocó. É algo orgânico e natural.
Acha que, neste sentido, este filme mostra-nos a realidade de um modo diferente do que fazem outros filmes?
Não sei dizer sobre os outros filmes, tal como não posso comparar uma pessoa a outra. Cada filme tem a sua própria linguagem. Mas o Kléber é fantástico! Quando vi com atenção o seu filme anterior, “O Som ao Redor” (2013), entrei numa nova dimensão, porque ele joga com o silêncio de uma forma intrigante – algo que eu não poderia fazer porque estou sempre a falar. É incrível como ele trabalha com isso.
O filme tem também um lado político. Qual é a sua visão sobre essa matéria?
As manifestações no Brasil começaram há uns três anos. Nessa altura, a polícia atacava até os jornalistas. Um sobrinho meu, fotógrafo, foi ferido por uma bala de borracha e dois outros fotógrafos ficaram cegos por balas de borracha. O que está a acontecer hoje no Brasil é uma onda que vem surgindo. O Kléber e todas as pessoas que participaram no filme têm uma vida ativa no mundo artístico, social e político, pois hoje em dia não há nenhuma divisão. O filme foi escrito há uns dois anos e terminou agora. Acho que o Kléber pressentiu que este tsunami estava a chegar.
A Sónia aparenta ser uma mulher calma. O que a faz perder essa calma? O que a irrita?
O que me faz sair dessa calma de que fala é contactar com injustiça. Rejo-me pela justiça. Quando não percebo o que se passa, e ultimamente tenho estado chocada com o que se passa, fico fora de mim. Mesmo que fale de uma forma calma, não significa que não esteja irritada. Eu estou irritada com o que se passa no meu país!
O que lhe pareceu o impeachment de Dilma?
Pareceu-me uma manobra. Não podemos só falar do impeachment, mas de algo que se passa há mais tempo, essa intenção de mudar o governo. Estes são tempos delicados. Por exemplo, hoje no meu Facebook tinha duas mil pessoas a dizer mal de mim, a dizerem coisas horríveis. O meu medo é que este caso vai abrir um precedente. Se alguém não gosta de um Presidente ou político, avança-se com um impeachment. A nossa democracia é muito jovem e demorou muito tempo a alcançá-la. Há um lado muito conservador, que recusa o aborto e outras questões femininas, que está a emergir. Isso é um passo atrás. Mas o pior é que as pessoas estão divididas e é nosso dever resolver isto. Em conjunto.
Uma menina chamada Sônia
Sônia Maria Campos Braga (Maringá, 8 de junho de 1950) revela-nos durante a entrevista alguns dos traços biográficos mais marcantes da sua vida. Ela própria confessa que gosta “muito de ser famosa”. Não tanto pela vida de luxos, mas “para poder ajudar os outros”. Cresceu numa casa cheia de crianças, sete ao todo, para os lados do Paraná, indo depois para Curitiba, estabelecendo-se com a família em Campinas, São Paulo. Os anos de infância passaram a correr, pois a vida confortável proporcionada pelos negócios do pai desapareceu com a morte dele, quando Sónia tinha oito anos. Antes de dar que falar como atriz, aprendeu a datilografar e foi rececionista. Até que o seu irmão gay a introduziu no meio artístico de São Paulo e a desafiou para subir a um palco. Assim passou a adolescência, a saltar do teatro para a televisão. Audaciosa, posaria nua aos 18 anos para uma versão brasileira do célebre musical “Hair”.
O seu ar ao mesmo tempo ingénuo e provocador criou um mito assim que deu corpo e alma à personagem principal da adaptação televisiva do romance de Jorge Amado, “Gabriela, Cravo e Canela”. O Brasil incendiou-se em 1975. O selo de sex symbol depressa a empurrou para outros projetos, como “Dona Flor e os Seus Dois Maridos”, um filme de Bruno Barreto, ou as novelas “Tieta do Agreste” e “Dancing Days”. No início dos anos 80 foi convidada para trabalhar em Hollywood. Primeiro, com “O Beijo da Mulher-Aranha”, de Hector Babenco, ao lado de William Hurt. No meio deste turbilhão, decide fixar-se nos EUA, onde teria ainda alguns sucessos dignos de nota, como “O Segredo de Milagro”, de Robert Redford, e “Lua Nova de Parador”, de Paul Mazursky, que lhe valeria o Globo de Ouro para a melhor atriz secundária, ao lado de Richard Dreyfuss. Trabalharia ainda com Clint Eastwood, em “Rookie, Um Profissional”. Radicada nos EUA, entre papéis esporádicos na televisão americana (como “O Sexo e a Cidade” ou “CSI Miami”), regressa sempre ao Brasil.
Erotismo para jantar
Naquele já longínquo maio de 1977, a criançada em Portugal percebia o que era o verdadeiro erotismo à hora do jantar, com as doses diárias da telenovela “Gabriela”, que sempre iniciava com o tema de Gal Costa. Mesmo a preto e branco, dava para sentir o calor daquela morena que provocava os coronéis, e não só – fazendo divagar as mentes daqueles que, do outro lado do Atlântico, davam os primeiros passos nessa coisa chamada liberdade. Aliás, o mesmo sucedia com um Brasil habituado à Ditadura Militar. Eram as pernas que subiam escadas e revelavam espaços até aí sempre vedados, e os decotes generosos, mas também toda uma atitude de independência que as mulheres desconheciam e que dava azo a comentários. Por tudo isso, àquela hora o ecrã de televisão era o santuário de muitas casas.