No meio da algazarra montada nos media a favor e contra a comissão parlamentar de inquérito aos desmandos na Caixa Geral de Depósitos, que estão na génese dos prejuízos acumulados, sobeja uma pergunta óbvia: quem tem medo de apurar a verdade sobre o que se passou?
Deixemos, por agora, de lado o visível desconforto do Bloco e do PCP, e fixemo-nos em duas infelicidades vindas de dois atores principais do PS (um deles, por acaso, primeiro-ministro em exercício).
Pela voz autorizada de Carlos César, soubemos que os receios do presidente do PS se concentram no «grau de exposição, espetacularidade e voyeurismo» que, no seu douto parecer, estão implícitos na proposta do PSD no caso da CGD. Curioso raciocínio.
Em contrapartida, para António Costa o que está em causa na iniciativa do PSD é do domínio da ‘arqueologia’. Poderia tê-lo feito antes, é verdade. Em todo o caso, mais vale tarde…
Comecemos, então, pela ‘arqueologia’ da Caixa, ‘escavando’ um pouco da realidade publicada, com a chancela do banco público.
Ao folhear o Relatório e Contas do Grupo CGD, relativo a 2005 – ano que marcou a transição para um governo de maioria socialista -, lê-se que «os resultados líquidos consolidados (…) ascenderam a 537,7 milhões de euros, valor que traduz, numa base comparável, uma taxa de crescimento de +31,9%».
Conclui-se naturalmente que a Caixa ainda respirava saúde. No ano seguinte, os resultados consolidados eram considerados históricos, somando 733,7 milhões de euros, correspondendo a um acréscimo de 36,5 por cento em relação ao verificado em 2005. Ou seja, os ganhos pareciam imparáveis.
Gradualmente, porém, as coisas começaram a mudar de figura. E bastou um lustro para a Caixa inverter a tendência de sucesso, negando proveito à Fazenda.
De facto, no relatório de 2011, registava-se um prejuízo, também ‘histórico’, de 488 milhões de euros, salientando-se que as imparidades relativas a títulos ascenderam a 613,1 milhões, enquanto as imparidades do crédito ascenderam a 827 milhões de euros (leia-se, prosaicamente, calotes).
Nesse relatório, para quem quisesse ler, acrescentava-se uma nota já sombria: «Face à desvalorização continuada dos títulos, o Grupo CGD já reconheceu na sua conta de resultados imparidades nas participações financeiras e outros títulos num montante acumulado de 1.844,7 milhões de euros».
Estes números devem ser bem conhecidos de António Costa – por muito que não se sinta vocacionado para a ‘arqueologia’ -, já que dizem respeito à época em que ocupou posições de relevo na governação liderada por José Sócrates, quando se desenhou o descalabro da Caixa.
A arqueologia confronta-nos com o passado. E tem vantagens inequívocas para compreendermos o presente e prepararmos o futuro.
O primeiro Executivo socialista, liderado por Sócrates, encontrou a Caixa pujante.
O segundo, que entregou o país à tutela da troika, deixou a Caixa em maus lençóis, por causa de operações controversas e de empréstimos que se revelaram ruinosos, alguns em nome de ‘cavalos de Troia’, que serviram ao poder político para tentar controlar o sistema financeiro. E os media.
Ainda hoje o BCP não se recompôs dos danos sofridos, quando foi ocupado pelos ‘comissários políticos’ idos da CGD, entre os quais Armando Vara – um dos ‘homens de mão’ de Sócrates, agora a contas com a Justiça, tal como o ex-primeiro-ministro.
Por alguma razão Sócrates se apressou a publicar esta semana um texto no JN, qualificando a proposta do inquérito parlamentar do PSD como «infantil manobra tática preventiva».
Percebe-se bem demais o que Sócrates quis dizer com este artigo ‘preventivo’ e adivinha-se o porquê dos medos de César e de Costa, que não desejam que um passado de má memória seja desenterrado e escrutinado, chamando a depor quem teve responsabilidades na gestão da Caixa.
Depois do BPN, do BES e do Banif, agora somos todos ‘lesados da Caixa’, recorrendo à feliz síntese do jornalista Paulo Ferreira, no Observador.
O contribuinte, que vai ser chamado a pagar mais esta fatura redonda, tem o direito de saber por onde se evaporaram muitos milhares de milhões.
E será isso, provavelmente, o que inquieta comunistas e bloquistas, adeptos confessos da nacionalização da banca – a começar pelo Novo Banco, integrado na CGD.
Antes de se pedir aos portugueses para financiarem a Caixa com mais quatro ou cinco mil milhões – ou o que for -, haverá que esclarecer o buraco.
É uma pesquisa ‘arqueológica’, decerto. Mas muito útil. Ao menos para ficar claro o que une socialistas e comunistas – e os faz convergir com personalidades tão diferentes, como Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix. Ao contrário de Vital Moreira, que defende o inquérito…