Quando se reformou, em 2012, a historiadora Maria de Fátima Bonifácio libertou-se de outros projetos que tinha em mãos e resolveu escrever um livro que lhe desse prazer. Como ponto de partida tomou «um fenómeno que permanece singular, misterioso, intrigante»:o facto de o seu amigo António Barreto nunca ter chegado ao topo da hierarquia política em Portugal, embora tivesse todas as condições para isso.
António Barreto – Política e Pensamento (ed. D. Quixote) tenta desfazer esse mistério. Para escrever o livro, Fátima Bonifácio realizou 17 entrevistas em que o sociólogo lhe recordou episódios e tentou responder com a máxima honestidade às suas questões. Algumas dessas entrevistas decorreram nesta mesma casa onde tem lugar a conversa com o SOL. Uma conversa em duas partes: a primeira sobre o livro e a relação entre a autora e o ‘biografado’ (embora não se trate exatamente de uma biografia), e uma segunda parte sobre grandes e pequenos temas da atualidade.
Fazer o retrato intelectual de uma pessoa viva – penso que é disso que este livro se trata – é mais difícil ou mais fácil do que fazer a biografia de uma figura histórica?
Maria de Fátima Bonifácio – Desde que a liberdade de quem escreve não seja coartada pelo facto de essa pessoa estar viva, é mais fácil, porque há coisas que podem não estar bem claras e podemos esclarecê-las com o próprio. O facto de o António ser meu amigo nunca foi um encargo ou um problema. Pelo contrário, beneficiou imenso o meu trabalho. Mas só porque ele é como é.
Quando lhe ocorreu que o António Barreto e o pensamento político dele seriam um bom tema para um livro?
MFB – Há muito tempo. Achava o António uma personagem intrigante e que seria interessante fazer, não exatamente uma biografia, mas um livro que reconstituísse com o máximo de precisão e de objetividade a evolução intelectual dele. Eu gosto de assistir a uma cabeça a pensar, fascina-me perceber como é que uma pessoa evolui intelectualmente, como a sua visão do mundo se vai modificando. Logo a seguir a reformar-me, em 2012, achei que tinha chegado o momento de ter disponibilidade, tempo e liberdade para escrever sem estar constrangida por formalismos académicos.
O António Barreto a princípio não torceu o nariz a ser o tema de um livro?
António Barreto – Fiquei inquieto, fiquei aflito, preocupado, indeciso, tudo isso. Mas escondi-lho tanto quanto possível. E devo dizer que fiquei honrado, também.
Sei que foi através do Vasco Pulido Valente e da Maria Filomena Mónica que se conheceram…
MFB – Foi no verão de 78, em que fui passar férias com o Vasco e a Mena, numa casa em Vilamoura alugada ao Sousa Tavares pai. Não sei se o António se lembra disso…
AB – Estavas de calças brancas e camisa branca, e ias para a Madeira. Não me hei de lembrar disso?! ‘Não sei se o António se lembra…’ Que história é essa?
MFB – [risos] Talvez não saibas é a petite histoire. A Mena e eu estávamos proibidas, sob pena de expulsão imediata, de mostrar, fosse por que forma fosse, o nosso desagrado por termos como hóspede um ministro que tinha derrotado a revolução comunista no Alentejo e que nós achávamos mais ou menos reacionário. Eu era completamente desbragada e a Mena era também muito esquerdista e libertária, portanto começámos a rosnar quando o Vasco anunciou que o António ia chegar nessa noite. ‘Se vocês se atrevem a tratar menos bem um amigo que eu convido para minha casa, vão para a rua’. Nós não ligávamos nada ao que o Vasco dizia, mas naquela altura percebemos que ele estava a falar a sério. E portámo-nos muito bem. Disfarçámos lindamente, porque o António não deu por nada.
Qual foi a primeira impressão com que ficou dele?
MFB – Não lhe liguei nenhuma. Lembro-me que ele começou logo à conversa com o Vasco, ele vinha irritadíssimo com o Partido Socialista, nomeadamente com o Dr. Mário Soares, e expressou isso quase com violência.
O António Barreto diz neste livro coisas terríveis sobre várias personalidades relevantes do nosso país. De Sampaio diz que é um «oportunista» e de Soares que «o critério número um da vida dele é o lugar dele». Esta frontalidade nunca lhe trouxe dissabores?
AB – Essas coisas fora do contexto parecem sempre uma coisa diferente do que são. Mas mantenho o que disse na altura. Há coisas que mesmo 20, 30, 40 anos depois eu não esqueço. Será que dar-lhes o nome que elas merecem me trouxe dissabores? Talvez. Tive muitos dissabores ao longo destes anos todos de vida política, perdi lutas, perdi batalhas, perdi oportunidades, talvez o facto de utilizar esse tipo de linguagem e de avaliação tenha que ver com isso.
A Fátima Bonifácio diz que o António Barreto «tinha tudo para ser tudo o que há para ser em Portugal». Esta frontalidade, o facto de lhe faltar alguma dissimulação, pode ter contribuído para não ter chegado ao topo da carreira política?
AB – Eu não partilho essa avaliação de que «tinha tudo para ser tudo». Faltam-me muitas coisas, muitas qualidades, muitas armas, muitos trunfos.
Não acha que se calhar também lhe faltam alguns defeitos? Algum oportunismo, por exemplo?
AB – Faltam-me sobretudo qualidades e virtudes. Defeitos tenho de sobra, não sei se faltam alguns.
Com este livro aprendeu ou descobriu alguma coisa sobre si próprio que estivesse esquecida ou que ignorasse?
AB – Só a Fátima podia ter feito este livro – por amizade, por competência, por talento. Lê-lo deu-me oportunidade de durante um ano ou dois de olhar para a minha a vida e para o meu passado. E descobrem-se imensas coisas. Não me compete a mim estar agora a descobrir o que encontrei de bom e o que encontrei de mau.
Disse noutra ocasião que quando chegava a uma nova fase da sua vida, deitava fora o retrovisor. Neste caso teve de ver o caminho todo pelo retrovisor. Gostou desse exercício?
AB – O meu retrovisor neste caso chama-se Maria de Fátima Bonifácio. E jamais deitaria fora esse retrovisor.
Como foram estas 17 entrevistas? Eram como as sessões de psicanálise, sempre no mesmo local, à mesma hora?
AB – Não. A Fátima marcava os encontros conforme a sua necessidade, em minha casa ou em casa dela.
MFB – Eu não tinha uma agenda muito definida para as conversas. Uns temas puxavam outros. Depois deu-me imenso trabalho, tive de fazer um índice pormenorizadíssimo das conversas para as poder agrupar de acordo com o índice do livro que já tinha na cabeça.
Transcreveu as conversas ou teve quem o fizesse por si?
MFB – Transcrevi as primeiras cinco. É a coisa mais maçadora que existe. Até que pensei: ‘Eu tenho 65 anos, já escrevi 14 livros, dei aulas a milhares de alunos, já não tenho idade nem estatuto para me aborrecer’. E aí pedi a uma pessoa muito habilitada e muito competente, e muitíssimo discreta, o favor de desgravar, como dizem os jornalistas, as entrevistas.
Isso foi a parte aborrecida. E qual foi a parte deste livro que lhe deu mais prazer escrever?
MFB – Deu-me prazer escrever todas as partes, mas particularmente a mutação intelectual que se dá por volta de 69, quando o António sai do Partido Comunista e começa a descolar da ortodoxia comunista. Em 73 o pensamento dele já mudou e já está ‘afinado’, digamos. Ou seja, deixou de pensar que era possível e desejável mudar uma sociedade revolucionariamente.
Foi também pelo seu anticomunismo que lhe deu prazer escrever essa parte?
MFB – Não, não. É puro prazer intelectual. Quando escrevo – e gostava que isto ficasse muito claro – a única lealdade a que estou vinculada é à verdade histórica, tal como eu a vejo.
Encontrei referências a um livro que o António Barreto iria escrever um dia e que seria ‘o Livro’, uma espécie de síntese do seu pensamento. É correto?
AB – Assim-assim. Em 2008 comecei a escrever um livro que era uma tentativa de síntese do que eu pensava e do que eu penso de Portugal e da sociedade portuguesa. E depois interrompi porque fui para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde estive cinco ou seis anos. Estou agora a voltar a essa tentativa, a esse livro, e a outros que quero escrever. Não creio, nesse sentido, que haja ‘o’ livro, mas há uma tentativa de recomeçar a escrever e de ser mais sintético em relação ao que eu penso sobre a sociedade portuguesa.
Os anos na fundação também o ajudaram a compor esse retrato?
AB – Ajudaram, na medida em que a fundação produziu muito conhecimento, informação, estatística, estudos, trabalhos de muita gente, e enriqueci o património que eu possa ter com o conhecimento produzido na fundação. Acontece também que esses cinco anos coincidiram com a grande crise financeira de 2008, a crise americana, europeia e portuguesa. Este período ajudou-me a perceber melhor os defeitos e as qualidades da sociedade portuguesa.
E o que concluiu?
AB – Estes últimos nove anos revelaram-me que a nossa sociedade é muito mais frágil, muito mais débil, muito mais vulnerável do que eu pensava. Estamos há 16 anos sem crescimento de qualquer espécie. O crescimento da economia portuguesa desde 2000 até hoje é zero. É um sinal de enorme fragilidade e isto eu aprendi nos anos que passaram.