Não vemos um palco, mas um verdadeiro cenário, cheio de profundezas, como se o tempo houvera pisado a imaginação, deixando à vista os escombros. Com uma luz que cai desigualmente, cativam-se as sombras, e antes mesmo de alguém vir a cena já se desenvolve aquela atmosfera insegura entre o sonho e o pesadelo, em que um território que a todos nos será de algum modo comum parece ter sido conquistado pelo grotesco e o bizarro.
O chão levantado, gaiolas de arame pairando um pouco acima ou abaixo do nível do peito, assombrações vazias, as cadeiras, a secretária, outras mesas, o disperso esqueleto das salas onde tivemos aulas tocado por aquela “luz que a memória empresta às coisas, a mais pálida de todas”. Antes que uma só palavra faça o ar estremecer, espanta o poder evocativo do cenário de Marta Carreiras iluminado por Nuno Meira, a forma como corresponde a uma reflexão do autor da peça que já começou, Eugène Ionesco. O dramaturgo de origem romena falou dessa sensação de não se saber se o que vemos é sonhado ou é uma lembrança. Uma luz que chama a irrealidade do mundo, dá a ver o seu lado “evanescente, como uma imagem evadindo-se em água corrente”.
E aparece uma menina, como se faltasse só uma desculpa para que um vício imenso retomasse as suas voltas. Do contraste quente do vestido, da grande ânsia que faz os gestos pintar sempre um pouco para lá das linhas, a aluna – Sara Barros Leitão –, é a imagem dessa ingénua doçura que surge feito capuchinho-vermelho no bosque, aliciando o seu lobo. Este não se faz esperar e surge vestindo a pele do Professor. Responsável também pela encenação, Miguel Seabra não empresta ao personagem qualquer clareza. Parece sempre proceder como se fosse obrigado a apanhar-se a si mesmo do chão, no menor gesto denúncia toda uma crise, como se o Professor em certo sentido se tivesse convertido no actor que depois de tantas vezes a carregar para palco a sua farsa, desse por si a questionar cada palavra, cada marcação. Ao mesmo tempo, esta dolorosa figura prossegue como se não lhe fosse dada a escolha de abandonar o seu papel, e parece murmurar a cada momento, “não sou capaz de continuar, eu vou continuar.”
A espevitada aluna, dedicando-lhe uma reverência cega, parece às vezes a arma apontada à cabeça do Professor, convencendo-o a prosseguir com a lição. Ela chega, assim, embalada em grandes esperanças, a começar pelas dos pais. Estes, endinheirados, pagarão o que for preciso. E o que é preciso é que a menina esteja preparada dentro de três semanas, altura em que se apresentará a exame com vista à obtenção do “doutoramento total”. A imbecilidade denunciada nesta expectativa logo nos mostra o lado cómico que era, para Ionesco, “a intuição do absurdo”, e, por isso, “mais desesperante do que o trágico”.
Há uma terceira figura, a criada – interpretada por Elsa Galvão –, que funciona como uma consciência sumida, alguém que não tem poder para interceder, mas vai avisando sobre alguns riscos, servindo ainda para que aflorem os impulsos autoritários do Professor, no modo como a escorraça, relembrando-a do seu papel, reforçando-se no seu. Como se fossem as suas posições a dirigir a acção e não já a convicção por trás das suas palavras e gestos. Aos poucos vai-se produzindo um aflitivo reflexo que expõe as emboscadas burocráticas quando a autoridade se esvazia e tudo o que lhe resta são os velhos tiques, as verdades de escola entretanto corroídas pela memória, limitando-se a prosseguir nalgum grau de loucura.
Num momento inicial, o texto maltrata as nossas fantasias, a lição parece inofensiva. O Professor procura testar os conhecimentos da aluna, e vem com somas de 2+1, congratulando-a por responder 3, e ela brilhando, batendo as asinhas, ele garantindo que ela está muito adiantada, e nós coçando sem comichão. Depois ele avança para as subtracções e aí a coisa complica-se de uma forma inusitada, e é por nos apercebermos que a aluna, se pode valer-se de uma memória prodigiosa, fá-lo para contornar a sua dificuldade de pensar. Há um momento a partir do qual a situação reproduzida por estas personagens já não nos é exterior. O mais banal exercício matemático captura-nos na sua narrativa, e a incapacidade da menina para tirar 3 de 4… (“Dá 1, porra!”, grita-se no parêntesis da nossa cabeça.)
O problema para o Professor, como para nós, é como dar a mão, explicar algo tão básico? É neste pequeno salto que a perversidade se instala. Porque é aqui que se torna mais fácil ceder à manipulação ou humilhar. A aluna que até ali fora uma força motriz, vai passar rapidamente a um papel submisso. Quanto ao Professor, especializado em todas as áreas do conhecimento, e que recebe as alunas em casa para as adestrar nesse infinito, este vai revelar-se um tirano precisamente pela sua impotência para transmitir o que sabe. A outra questão que vai tornar tudo mais sórdido é mesmo essa: Afinal, o que sabe ele? Cada coisa que diz ensaia uma ponte que fica a meio, nada se resolve nem esclarece. E ainda há pouco tínhamos o solo bem firme debaixo dos nossos pés, no jardim-escola da aritmética.
Educação do Absurdo
Escrita em 1951, ainda no rescaldo da II Guerra Mundial, e contemporânea de “À Espera de Godot”, “A Lição” é uma das peças nucleares no desbravar do que veio a ficar conhecido como “o teatro do absurdo”. O termo foi cunhado pelo crítico Martin Esslin. Ionesco referia-se simplesmente as suas peças como anti-peças. Neste território, e segundo as palavras do dramaturgo, as personagens surgem desprovidas de um sentido metafísico, não há lei nem ordem que lhes valha. Miseráveis, não entendem porque o são. Não passam de fantoches, são incompletas. “Em suma, representam o homem moderno. A sua situação não é trágica, uma vez que não tem relação com uma ordem divina. A sua condição é antes risível, ridícula, patética.”
Quando, em 1988, um jornalista do “New York Times” lhe pediu que nomeasse os seus compatriotas no teatro do absurdo, além de Beckett, Ionesco referiu Genet, Adamov e Shakespeare. À surpresa do jornalista, Ionesco acudiu e lembrou como “Macbeth, por exemplo, disse que o mundo é uma estória contada por um idiota, cheia de som e fúria, vazia de significado – essa é a mais pura definição do teatro do absurdo, e possivelmente do mundo. Shakespeare foi o nosso grande antecessor. Escavou o seu lugar entre Deus e o desespero…”
Na sinopse da peça, o Teatro Meridional refere como o próprio trai as aparências, uma vez que, se inicialmente aparenta “ser uma sátira sobre os processos do ensino e a aquisição das aprendizagens, à medida que a acção se vai desenrolando, o tom de farsa vai adensando em tragédia”. No fim da linha, o que está em causa são os processos através dos quais a autoridade vicia os vínculos sociais, fechando cada indivíduo na cela do papel que deve representar.
Vasculhando a ausência de Deus, esse rasto frio que se perde e só conduz ao desespero, impõe-se um cerimonial restritivo, onde os mimetismos se destemperam e se tornam actos raivosos de loucos. De resto, Ionesco foi claro na sua denúncia de que o “truque da insanidade de massas é a forma como nos persuade de que o único anormal é aquele que se recusa a aderir à loucura dos demais, aquele que em vão tenta resistir”. E concluiu: “Nós nunca iremos compreender o totalitarismo se não percebermos que as pessoas raramente têm a força necessária para se desviarem da norma.”
Miguel Seabra, que dirige com Natália Luísa o grupo sediado num antigo armazém camarário no Poço do Bispo, disse ao i que a escolha deste texto foi feita como resposta a um momento em que cá dentro como lá fora estamos perante um reemergência das forças políticas de extrema-direita. “Temos claramente o fascismo a bater-nos à porta, de forma assustadora.” Para o encenador, esta peça lida com a confusão que se gera hoje através dos processos de comunicação e que configura “uma estratégia política de manipulação”. Seabra entende que a ingenuidade da aluna tem um paralelo com a ilusão do acesso facilitado à informação e ao suposto conhecimento, nomeadamente através “dessa falsa proximidade que oferece a internet, com as redes sociais, os motores de pesquisa, etc”.
Num momento em que “não há tempo para se levar o seu tempo”, como já notara Ionesco, esta peça escrita há 65 anos, já não é simplesmente a memória que do passado convocava o espectro de um tempo em que as máscaras do horror pareciam ter caído todas ao mesmo tempo, mas tem a força de um prenúncio. “Tudo aquilo que aconteceu, acontecerá; tudo aquilo que vai acontecer já aí está, tudo aquilo que acontecerá já aconteceu”, escreveu o dramaturgo, e de outra vez disse que só se podem prever aquelas coisas que já aconteceram.