A 30 de maio de 1967 a jovem Galeria 111 inaugurava a sua primeira de muitas exposições de um artista sediado em Paris e já então com algum nome no meio: Júlio Pomar. «As pessoas não imaginam como esses tempos eram difíceis», recorda Maria Arlete Alves da Silva, a viúva de Manuel de Brito, fundador da Galeria 111, a propósito desses anos. «Na altura toda a gente queria ter uma reprodução da Guernica em casa, e nós mandávamos vir reproduções da Holanda, mas eram raras as que conseguiam passar na fronteira. Com os livros passava-se o mesmo. Um dia o Padre Manuel Antunes encomendou-nos 100 exemplares d’A Paz, de Aristófanes, para os alunos dele. Só que os livros tinham uma pomba na capa e a PIDE veio cá e levou-os todos. Aliás, durante anos tivemos dois pides ‘privativos’», conta a galerista.
Meio século volvido sobre essa inauguração e esses «tempos difíceis», a Galeria do Campo Grande junta Júlio Pomar e o filho, Vítor Pomar, numa exposição inédita – Ver o que Salta aos Olhos (até 11 de setembro, mas atenção que a galeria estará fechada durante o mês de agosto). A ideia partiu de Vítor, que contou com a colaboração do pai para a conceção e montagem. «O Vítor até fez maquetes pormenorizadas da galeria», com imagens miniaturais das obras, «que ia mudando à medida que repensava o projeto», revela Arlete Alves da Silva.
Apesar de partilharem o apelido e o ofício, Júlio e Vítor Pomar percorreram caminhos bem distintos. «Há uma diferença de ver, da maneira de pensar e de pintar que é absolutamente natural. Cada um tem o seu caminho, o que não implica obrigatoriamente rejeição ou desacordo», sublinha Júlio Pomar.
Pegadas na tela
«Eu tinha seis anos quando os meus pais se divorciaram, o que determinou uma mudança para o Porto», refere Vítor Pomar, que por isso não guarda recordações de infância do pai a trabalhar. Chama, ainda assim, a atenção para «o seu vai-e-vem em frente ao cavalete, que constitui o seu modus operandi principal, e que por si só é determinante de uma pintura construída e vertical». Um método que Vítor não partilha: «Optei desde o início da minha atividade por uma outra situação, em que a tela é pousada no chão, o que permite contorná-la, e que faz com que as noções de alto e baixo, direito e esquerdo, assim como a determinação de qual será a posição final do quadro, tudo isso se apresenta de um modo muito particular que permite uma maior intervenção do acaso, uma perceção muito diferente».
Essa maneira de trabalhar com a tela no chão pode ser confirmada, de resto, num tríptico alusivo ao 11 de setembro, onde se veem claramente marcas de pegadas.
Outra diferença fundamental entre as obras de pai e filho é que Júlio nunca fez pintura abstrata. «Andei próximo, vagamente, mas nunca fui capaz de fazer», revelou numa entrevista concedida ao SOL um dia antes de completar 90 anos. Vítor Pomar, em contrapartida, nunca teve dúvidas de que seria justamente esse o seu caminho: «Enquanto frequentava o liceu comecei a fazer desenhos abstratos, tipo tramas, primeiro nas margens dos cadernos escolares e logo em folhas inteiras e também fora dos cadernos», recorda. «Ainda antes de entrar na Escola Superior de Belas Artes pude utilizar um ateliê durante seis meses onde pintei sobre cartolinas pousadas no chão e já acentuadamente em modo abstrato».
Exílio na Holanda e espiritualidade oriental
Depois de um ano nas Belas Artes do Porto e de dois anos em Lisboa, Vítor Pomar exilou-se na Holanda, «afim de não participar na guerra colonial», concluindo a sua formação académica em Roterdão. Ali experimentou outros media, sobretudo a fotografia e o filme. «Só então pude retomar as pinturas», continua o artista. «Entre 77 e 83 apenas a preto e branco, a que se seguiu um período de dois anos em que comecei a usar a cor». Viver na Holanda permitiu-lhe também reaproximar-se do pai, visitando-o com alguma frequência no seu ateliê de Paris.
Vítor Pomar chama ainda a atenção para uma coincidência: «Foi com 36 anos de idade que o Júlio se instalou pela primeira vez em Paris, enquanto eu próprio voltei para Portugal, ao fim de 16 anos de ‘exílio’, exatamente com essa idade».
De regresso a Portugal, em 1985 Vítor tomou contacto com o Budismo Zen através do mestre Hogan Hyamahata. «Entre 91 e 94 esteve na Índia um ano e meio, ao longo de três anos, e fez retiros de silêncio», explica Arlete Alves da Silva. «Sinto-me hoje como que sentado em diversas cadeiras, a saber as artes plásticas tal como são entendidas no ocidente, e a espiritualidade, nas suas diversas vertentes, desde o Zen ao tantra cachemiriano, o budismo vajrayana e ao dzogchen, a que em boa hora se veio juntar alguma aproximação ao xamanismo e às culturas nativas não escritas», explicou o artista, que vive retirado em Assentiz (concelho de Torres Novas), numa nota autobiográfica. Para a galerista, essa experiência traduz-se no «ascetismo e espiritualidade» da sua pintura, enquanto a obra do pai exprime «a celebração do corpo» e até uma certa volúpia.
Curiosamente, das obras de Júlio que pertencem ao acervo da Galeria 111, foram precisamente as eróticas – algumas delas com representações assaz explícitas do ato sexual – que Vítor escolheu para integrarem esta exposição. Nelas, vislumbra «uma dimensão mitológica, naquilo que a mitologia tem de representação essencial da realidade».
Para Júlio Pomar, a confrontação entre as respetivas obras, colocadas em paredes frente a frente na galeria, «funciona». Na inauguração, «quando chegou cá, por volta das onze, o Júlio ficou muito contente e esteve sempre muito bem disposto», diz-nos Arlete Alves da Silva.
Para Vítor Pomar, Ver o que Salta aos Olhos acima de tudo celebra uma relação: «Agora que o Júlio completou 90 anos de idade e que eu completarei 70 dentro de dois anos, a distância entre nós parece mais diminuta do que nunca, e é essa celebração que esta exposição exprime».