Quando, no último domingo, vi Cristiano Ronaldo a ser levado em maca e em lágrimas do relvado do estádio francês, pensei: «Ganhámos. Estes biltres que nos tentam sacar a taça através da pulhice já vão ver do que a casa gasta».
A raiva é o grande combustível lusitano: quando nos sentimos enganados, ludibriados, traídos, a maré doce e melancólica que nos corre no sangue, aquela água morna que o clima, a paisagem e a tradição das castas favorecem, desata a ferver e transforma-se em sangue.
Todas as grandes obras de arte nascem da fúria. O problema dos portugueses é que se enfurecem mais de dentro para dentro do que de dentro para fora.
Não sei se foi o melífluo Salazar quem nos habituou a pensarmos mal de nós próprios (e dos outros, claro), a desmerecermo-nos continuamente, ou se esse vício já vinha de trás. Mas sei que a educação para o desalento se mantém fortíssima em Portugal.
Pensamos que educar é reprimir, criticar, deitar abaixo; convencemo-nos de que isso fortalece o espírito, e que os elogios amolecem. Dizemos que os mimos «estragam».
Não há teoria psicológica que nos faça alterar esta visão do mundo, até porque as teorias demoram a entrar nas fronteiras nacionais – e, por cá, quem ouse ter teorias cala-se, por medo do ridículo.
Espantamo-nos com o sucesso dos portugueses que emigram, sejam eles calceteiros ou filósofos. É que, no ‘lá fora’ para onde se emigra, o mérito conta. As castas não são inamovíveis. E, sobretudo, ninguém nos está a ver e a deprimir-nos metodicamente enquanto estamos a tentar melhorar.
Naquele estádio de Paris, tivemos várias sortes: a sorte de estarmos a jogar no campo do adversário; a sorte de que esse adversário fosse a França, onde mais de meio milhão de portugueses vive e trabalha; a sorte de que os franceses insistam em ver os portugueses como as suas porteiras e os seus trolhas; a sorte de Cristiano Ronaldo ter sido atacado por dois jogadores franceses (só falam de um, mas eu cá vi claramente vista uma sanduíche de atacantes) mal o jogo começara; a sorte de o árbitro inglês, talvez sob o efeito do Brexit, se ter fingido cego, e nem falta ter assinalado; a sorte de o árbitro ter permanecido ceguinho às malfeitorias dos franceses durante praticamente todo o jogo; a sorte de a equipa francesa ter pensado que, abatido Ronaldo, bastaria ficar a contar as traças até ao fim do jogo.
Até me parece que as traças que invadiram o campo foram lançadas das janelas parisienses pelas nossas valorosas e patrióticas porteiras e mulheres-a-dias. Assim como quem diz: «Vamos traçar-vos!». Mas os franceses são cartesianos: só acreditam no que já sabem. E isso, hélas, nem sempre basta.
O espírito de equipa que esta Seleção demonstrou, a esse não pode chamar-se sorte, porque é o oposto dela e o contrário do que estamos acostumados a fazer: unirmo-nos para ganhar.
Durante todo o extraordinário percurso desta Seleção, as televisões pululavam de céticos e cínicos, comentadores sentados no caldeirão borbulhante da má-língua e da troça, a zurzir em Fernando Santos, nas suas opções e na sua fé.
Quando Ronaldo foi atacado à má-fila, cada um dos jogadores decidiu honrá-lo e vingá-lo. Talvez tivessem vencido com o capitão em campo: tinham capacidade, trabalho, talento, humildade e vontade suficientes.
Mas, sem ele, era vitória certa – por todas as razões que já traziam, e por ele. Deram uma lição aos franceses, sim – e outra, bem maior, a Portugal.
Os heróis do futebol não nasceram em berço de ouro. Muitos deles atravessaram infâncias duríssimas. A grande maioria é hoje emigrante – emigrantes ricos, claro, porque batalhadores. O desporto de alta competição exige uma gigantesca disciplina física e psicológica.
O futebol é um desporto violento. Os nossos treinadores de bancada queixaram-se da falta de «beleza» do jogo português. Percebo: gostam de jogadas surpreendentes, corridas em zigue-zague com a bola, o pontapé épico – o que Éder conseguiu fazer, naquele momento radioso.
Mas, entre equipas de excelência, raramente há oportunidade para essas exibições do génio individual: os jogadores vivem em cima dos calos dos adversários, os guarda-redes são muralhas, o jogo é estrategicamente fechado.
Na final de 2004, Portugal quis jogar ‘bonito’ e foi cilindrado pela estratégia burocrática da Grécia. O futebol é, cada vez mais, um jogo de conjunto – e isso os nossos rapazes perceberam-no melhor do que ninguém. Por isso ganharam.
Neste tempo em que alguns dos principais representantes das elites do poder e do dinheiro nos envergonham miseravelmente, os putos do povo entregam-nos um orgulho novo, inteiro e limpo.