São 14 os barcos de guerra que se encontram em fuga. Segundo o circunspecto diário britânico “The Times”, estes navios fortemente armados encontravam-se a rumar a destino desconhecido depois do falhado golpe de Estado. O comandante da marinha de guerra turca, o almirante Veysel Kosele, estaria em parte incerta desde o dia do golpe, a passada sexta-feira, segundo revelou uma fonte anónima ao diário britânico.
Segundo reza a contagem do editorial do dia 20 de julho do “New York Times”, mais de 35 mil membros das forças armadas e de segurança tinham sido presos ou demitidos na sequência do golpe de Estado, incluindo 103 generais e almirantes – quase um terço dos altos comandos militares. Um dos oficiais detidos é o próprio adido militar do presidente Erdogan; 15 mil funcionários do Ministério da Educação foram suspensos; 21 mil professores foram despedidos; e mais de 1500 reitores universitários foram forçados a resignar aos seus cargos.
Há pouca coisa que se sabe sobre a tentativa de golpe de Estado, e a sua origem e veracidade ainda está envolta em bruma, mas há duas coisas que já são absolutamente claras: se tanta gente estivesse envolvida, dificilmente teria falhado; e a detenção, despedimento e suspensão de dezenas de milhares de pessoas já estavam previstas e listadas muito antes dos acontecimentos de sexta passada.
A Turquia não tem propriamente uma tradição democrática de não envolvimento dos militares nas questões políticas. A construção da nova Turquia por Kemal Atatürk é feita colocando os militares no centro do poder e como garantes da laicização do Estado. Durante décadas, os militares constituíram redes de interesse e de poder que funcionavam como um Estado dentro do Estado. Esse Estado profundo foi estabelecido com o apoio das potências ocidentais, que necessitavam de manter a Turquia no âmbito da NATO. Os militares prendiam, assassinavam e perseguiam toda a sombra de dissidência, fossem comunistas, islamitas ou militantes curdos.
Acresce a esta realidade uma tradição de fortíssima violência. Quando começou a discutir a solução final para os judeus, isto é, o genocídio dos judeus na Europa, Hitler exemplificava com o massacre de milhões de arménios perpetrado pelos turcos, em 1915, dizendo que anos depois já ninguém falava do assunto. Ainda hoje é proibido na Turquia falar do genocídio que vitimou mais de milhão e meio de arménios.
Quando, em 2002, ganhou as eleições e se tornou primeiro-ministro, Erdogan não ignorava que estava debaixo da bota dos militares.
A chegada ao poder de Recep Erdogan apareceu como a primeira experiência de um poder islâmico democrático que aceitaria a laicidade do Estado e conviveria com a população das cidades mais cosmopolitas. A mescla de um islão soft e conservador com um capitalismo liberal agressivo permitiu, em pouco tempo, a duplicação do PIB do país. O governo de Erdogan apareceu como libertador para muitas camadas da população, anteriormente ostracizadas e reprimidas.
“Eu acreditei que Erdogan ia ser diferente”, afirma Demirtas, o líder do partido pró-curdo. Em 2009, Erdogan lançou as conversações de paz com o PKK e legislou para conceder os direitos de ensino da língua curda. O processo falhou quando as autoridades lançaram uma campanha para prender milhares de curdos. Erdogan fez o mesmo cálculo dos seus predecessores: o conflito é impopular no Curdistão, mas dá votos nacionalistas noutras zonas da Turquia, mais conservadoras. “Afinal enganei-me”, diz o político curdo, “Erdogan não passa de outro turco nacionalista.”
O que aconteceu com os curdos passou-se em muitos outros campos: da política de pacificação e de não ter problemas com os vizinhos, o governo de Ancara passou a jogar abertamente a carta da guerra na Síria, apoiando forças rebeldes ligadas à Al-Qaeda e bombardeando as forças curdas sírias e iraquianas que se opõem ao avanço do Estado Islâmico. Da tentativa de mediar o conflito entre os EUA e o Irão sobre o nuclear, Erdogan passou ao ataque a Teerão, tendo sido apanhado em contrapé com o acordo entre os dois países. A fuga para o conflito deixou-o numa posição perigosa quando a força aérea turca abateu um caça russo perto da fronteira com a Síria.
Nas últimas semanas, Erdogan tentou fazer marcha-atrás, pedindo desculpas à Rússia e retomando relações com Israel, cortadas depois do ataque do exército hebreu a uma flotilha de barcos turcos que levava mantimentos e medicamentos para o território palestiniano de Gaza.
A política de Recep Erdogan tornou-se cada vez mais errática, no sentido que as suas alianças e direção são instáveis e subordinam-se a um único objetivo : a sua manutenção no poder.
O seu isolamento interno e externo é contrabalançado por duas realidades: um apoio importante na população das zonas mais conservadoras e pobres da Turquia e uma sustentação crescente da União Europeia que, a braços com a crise dos refugiados, faria acordos com o diabo se isso fosse necessário. Mas o crescimento exponencial da repressão que o pós-golpe faz prever, a redução das liberdades democráticas e da independência dos magistrados e o regime de falta de liberdade de imprensa que se vive na Turquia fazem prever que dificilmente será permitido ao país aderir à UE. A Europa admite países crescentemente ditatoriais como a Hungria, mas têm de ser cristãos.