Ganhar, perdendo: o paradoxo da luta contra o Daesh

Não existe sociedade sem crime. 

Novo atentado terrorismo vitimou mais europeus. Desta vez, na potência liderante e dominante da Europa actual – a Alemanha, mais precisamente na cidade de Munique. Parece que entrámos já numa espiral progressiva de violência e tragédia: parece já distante a semana em que os europeus (e todos os cidadãos que prezam a liberdade e a democracia) não tivessem que passar por um processo de luto. De luto e de preocupação. Preocupação, quanto ao presente; inquietação, quanto ao futuro.

Não obstante esta percepção popular de que a luta contra o terrorismo está a ser perdida pelo “mundo livre”, a verdade é que as operações levadas a cabo pela coligação internacional militar sob a égide da NATO, bem como o trabalho desenvolvido pelas forças se segurança interna e inteligência dos vários Estados, têm conduzido a um enfraquecimento progressivo e sintomático do Daesh. O islamismo radical, as organizações terroristas que matam apenas pelo terror e pela barbárie utilizando (fraudulentamente) o nome de Deus – estão a perder recursos, poder, capacidade de manobra e já nem mesmo a internet (mesmo os espaços mais obscuros) conseguem dominar com a mesma facilidade de até bem pouco tempo.

Ocorrem atentados em pleno coração da Europa, como em França ou na Alemanha – mas é já o coração (em sentido metafórico, claro, pois não há “coração” no meio de tanto ódio e violência) operacional do Daesh que já sente dificuldades em palpitar. O Daesh está a morrer (como se constata pela perda de alguns dos seus bastiões territoriais) – e a iminência do colapso iminente desperta o desespero e a violência em crescendo. Temos, pois, que estar preparados para um (último) suspiro de terror e caos lançados pela falência do Daesh.

Dito isto, a verdade é que pouco sossegará os cidadãos – europeus, norte-americanos e um pouco por todo o mundo – saber que estamos a vencer os terroristas do Daesh, se essa vitória não se traduzir em mais segurança e tranquilidade nas suas vidas diárias. É preciso levar os franceses, os alemães, os europeus, todos, a sentir novamente que poderão viver as respectivas vidas sem medo. Que podem beneficiar das enormes vantagens do “mundo livre”, da nossa sociedade tolerante, pluralista e aberta, sem receios, nem pesadelos. Que podem ir ao cinema, jantar a um restaurante, divertirem-se em discotecas – sem o “fantasma” do terrorismo sempre presente. Pois bem, infelizmente, a devolução do sentido de segurança e da tranquilidade aos cidadãos será uma tarefa bem mais difícil do que vencer, no terreno, as forças do Daesh.

É que, ao mesmo tempo que derrotamos as forças militares do Daesh, as novas tecnologias de informação e comunicação – com especial destaque para as redes sociais e para esse mundo tão desconhecido quanto perverso que é a “dark net” – disseminaram uma cultura de violência e de “banalização do mal” que tornam a prevenção do crime uma tarefa hercúlea para as forças de segurança. A redução do terrorismo “a zero” é impossível, tal como é impossível evitar as práticas criminosas numa sociedade (seja democrática ou totalitária).

Não existe sociedade sem crime. A novidade destes nossos “anos loucos” é que temos um tipo de criminalidade sem enquadramento institucional (o Daesh está cada vez mais fraco e sem capacidade organizatória, limitando-se à pregação via online), motivada por emoções e estados subjectivos do agente – o mais próximo destes novos crimes de terrorismo são os chamados “crimes passionais”. Porquê? Porque neste novo “paradigma de terrorismo”, o agente é dominado por sentimentos como o ódio pela sociedade em que vivem, por estados de fraqueza emocional, pela incapacidade de exercer o livre-arbítrio responsavelmente (ou seja, de discernir), pela ideia de um Deus redentor que os irá retribuir pela “limpeza” do pecado do mundo. A que acresce o desejo de muitos de se imortalizarem pelos vídeos no youtube, na TV, nos jornais e nas revistas. Estes” lobos solitários” querem ser heróis sendo anti-heróis.

O Daesh veio, pois, espalhar a semente de uma ameaça premente às sociedades democráticas: a morte e a barbárie como armas de conquista política e ideológica. Não é que o terrorismo seja um fenómeno recente – os jacobinos franceses, por exemplo, após a Revolução Francesa, tomaram o poder pelo terror, instaurando um regime de terror, o que mostra que o terrorismo tem antecedentes longínquos. A novidade trazida pelo Daesh foi a actualização mais sofisticada e eficaz do terrorismo à sociedade cibernética, dominada pelos Iphones, pelos smartphones e pelas redes sociais. O Daesh “inventou”, pois, o terrorismo 4.0, de quarta geração.

E este tipo de terrorismo pode ser aproveitado por outras forças políticas extremistas (como a extrema-direita) para lançar o caos, o medo e o terror com o mesmo sucesso que o Daesh (terá sido o que aconteceu em Munique). Tudo para fazer vingar as suas “teses”, exponenciando as possibilidades de sucesso da sua mensagem política. Em cada esquina, poderá, assim, estar um assassino perigosíssimo. As sociedades livres terão que converter a “banalidade do mal” – num “mal banal”. E adaptar as suas estruturas, a organização e as convenções de actuação das forças policiais, bem como as regras jurídicas (com especial destaque para uma reformulação crítica da dogmática do Direito Penal) a esta nova realidade.

Eis, pois, o paradoxo da luta contra o Daesh e contra o terrorismo, em geral: estamos a ganhar no terreno, aniquilando as suas estruturas e os seus meios de financiamento. Mas perdemos no campo ideológico e simbólico, pois os cidadãos (em especial, os europeus) sentem-se cada vez mais inseguros, mais preocupados, vivendo com a percepção de que novos ataques terroristas, ainda mais letais, poderão acontecer.

O Daesh veio mostrar, através dos “lobos solitários”, quão fácil é fazer tão mal a tanta gente. O Daesh quer destruir as nossas sociedades por “dentro”, lançando o caos e as dúvidas sobre a nossa forma de viver e de estar. Não nos viremos contra nós, não nos viremos contra a nossa sociedade livre e democrática – cada um de nós, acreditando nas suas convicções, nos seus valores, nos seus princípios, será determinante para o terrorismo viva o terror da sua derrota.