Fora do minúsculo meio político-cultural – um dedal, embora os seus elementos não gostem de se incomodar a reparar nisso – não conheço ninguém que saiba o que é a CPLP, que agora completou 20 anos. Mesmo dentro desse culto e informado meio, é fácil encontrar quem nunca tenha ouvido falar dela, pelo menos no Brasil, que por sinal é o maior país dessa associação. CPLP é a sigla para Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; uma comunidade tão generosa que inclui, desde 2014, a Guiné Equatorial, que não fala português nem respeita os direitos humanos básicos. É certo que ‘respeito’ é um conceito relativo: os sheiks das Arábias acham que faz parte do respeito pelas mulheres proibi-las de decidir o que quer que seja e apedrejá-las caso se deixem violar, tal como os governantes de Angola acham que faz parte do respeito pela liberdade de expressão prender quem pense que manter o povo na miséria não corresponde ao modelo ideal de democracia.
Eu própria, que me interesso por estas coisas, só agora descobri que a CPLP inclui um Instituto Internacional da Língua Portuguesa, para promoção mundial da Língua. Não sei o que tem feito o Instituto para cumprir esse nobre desígnio: da Língua e da CPLP, a bem dizer, só tenho ouvido falar a propósito do mal-amanhado Acordo Ortográfico, que supostamente nasceu para reforçar o peso do idioma no mundo e para estreitar os laços culturais entre os países lusófonos. Maria Velho da Costa disse há anos que Lusofonia parecia nome de doença de garganta, e assim tem sido: um pigarreio contínuo, que o tal acordo unificador, brilhantíssimo – que faz com que receção se escreva hoje sem ‘p’ em Portugal e com ‘p’ no Brasil – não veio curar, antes pelo contrário.
Leio (no Público de 19 de Julho) a seguinte afirmação do secretário executivo da CPLP, o moçambicano Murade Muragy, proferida na cerimónia de celebração do 20.º aniversário: «A CPLP não deve ficar refém da nostalgia da língua portuguesa e deixar de aproveitar as oportunidades que o mundo multipolar contemporâneo nos oferece, tanto em conexões como em oportunidades de criar cadeias de valor». Portanto, esta língua falada em todos os continentes não é uma riqueza do «mundo multipolar» nem serve para criar «cadeias de valor», mas sim um velho traste, uma excrescência dos tempos coloniais da qual continuamos ‘reféns’. Podemos talvez atribuir o próximo prémio Camões a um escritor desse novo sócio do Clube dos Países da Língua Passada – e Morta e Lobotomizada – (CPLP-ML) que é a Guiné Equatorial. E começar a tratar dos papéis para meter no grupo a Arábia Saudita, que contém em si o esplendor da multipolaridade.
Nas últimas décadas, o castelhano afirmou-se como a segunda língua mais falada do mundo. Fê-lo sem acordos ortográficos nem cêpêelepês, sem complexos imperiais e sem cerimónias. Teve a ajuda dessa Roma contemporânea que são os Estados Unidos da América, onde o mundo hispânico tem vindo a crescer; mas o Brasil, apesar de todos os seus problemas (ou por causa deles), será a Roma do próximo milénio, embora pouca gente queira dar por isso. E o Brasil, felizmente, não tem nem nunca teve crises de identidade nem complexos infantis em relação à paternidade da Língua – usa e abusa dela, acrescentando-a luxuriantemente com o vocabulário de todas as suas outras línguas. E transformou-a em música, com uma graça e uma criatividade imbatíveis. Ou não fosse o Brasil a pátria mais verdadeira do Padre António Vieira, que Fernando Pessoa coroou como ‘Imperador da Língua’.
Espanha tem tido uma política enérgica e persistente quanto ao ensino e divulgação do castelhano: está presente em todas as grandes universidades do mundo e destrona progressivamente o francês no ensino básico e secundário; em Portugal essa mudança tem sido veloz e violenta: o francês quase desapareceu das escolas, o que representa um empobrecimento real, dado que qualquer português entende os mínimos do espanhol e pode aprofundar o estudo dessa língua em qualquer época, o que não sucede com o francês. A literatura de língua castelhana soma prémios, muitos deles criados e agigantados pela própria Espanha, e a multiplicação de falantes da língua incrementa o número e a qualidade dos tradutores, dos especialistas… e dos leitores, claro. O Instituto Cervantes desenvolve uma ação cultural e diplomática intensa, em múltiplas frentes, enquanto o Instituto Camões sobrevive há décadas com orçamentos irrisórios, contando sobretudo com o imprevisto da imaginação e das boas vontades. Quando até um responsável da CPLP declara que a Língua é uma coisa a esquecer, estamos conversados. inespedrosa.sol@gmail.com