Hitler e Estaline: será justo emparelhá-los na galeria de horrores do século XX?

A memória histórica é objeto de permanente reinterpretação. O fluir do tempo induz junto da opinião menos informada um juízo simplificado, muitas vezes orientado por conveniência ideológica, dele resultando uma síntese seletiva em que que as distorções e as falsas analogias abundam. 

Um deles é o emparelhamento de Hitler e de Estaline na galeria dos monstros do século XX. Se bem que ambos os ditadores tenham, de facto, crimes em número mais do que suficiente para lá poderem figurar, repugna à verdade histórica associá-los sem a necessária nota explicativa. 

Um dos desígnios inconfessados daquele emparelhamento é o de pôr em pé de igualdade os regimes nazi e comunista. Ora, tal é inaceitável. O nazismo foi um regime de barbárie sem paralelo na história europeia recente. O culto visceral da violência teria de levar o III Reich ao rápido esmagamento dos seus adversários ou à sua própria destruição: que outro sentido se poderia entrever no lema Weltmacht oder Niedergang? O desprezo pelos elementos não germânicos da família europeia tornava a ideologia acintosa para a maioria dos continentais. Se a estética nazi exerceu eficazmente o seu sortilégio sombrio nas liturgias anuais de Nuremberga, distintamente, a teorização escrita nunca conseguiu elevar-se do pântano da irracionalidade. O que valem Rosenberg, Heidegger, e mesmo Jung – este num  momento de algum desnorte – contrapostos ao fascínio exercido décadas a fio pela ideologia comunista sobre boa parte da intelectualidade europeia? O regime comunista também teve os seus episódios caricatos no campo da defesa das ideias: as contorções interpretativas impostas a muita da fina-flor das letras, das artes, e também das ciências, do velho continente, com os consequentes desenganos e ruturas, fizeram história. Mas, que contraste com o frenesim anti-intelectual dos autos-de-fé de Goebbels, atiçados mal o poder acabara de ser alcançado! 

Caso tivessem sido vencidos naquela que designaram de Grande Guerra Patriótica, os povos eslavos teriam sido reduzidos ao mero estado de hilotas. Os que sobrevivessem aos rigores da derrota teriam de – suprema humilhação – trabalhar como escravos na construção dos Totenburgen, esses majestosos mausoléus projetados pelos novos senhores germânicos para os seus guerreiros caídos na conquista das planícies do Leste. Distintamente, no final dos anos oitenta, quando os alemães orientais se libertaram do regime comunista, tinham desfrutado ao longo de algumas décadas de um nível de vida certamente inferior ao dos seus familiares do outro lado do Muro, mas  – assinale-se o facto –  sensivelmente mais desafogado do que o dos seus irmãos socialistas na própria Rússia. 

Finalmente, que diferença abissal separa um regime que soçobrou na violência, escassos dias após o suicídio do seu mentor, de um outro que colapsou na paz, corroído ao longo de décadas pelas suas contradições internas e no preciso momento em que, numa vã tentativa, procurava regenerar-se!

Feita esta separação de águas políticas, como dispor dos espectros de Hitler e de Estaline? Com amarga ironia, alerta-se para que, desde Dante, o Inferno é suficientemente alargado para que não tenha de se recorrer a um mesmo círculo.