A Convenção Democrata, que terminou na quinta-feira, correu muito bem para Hillary Clinton, a já formalmente candidata democrata às eleições presidenciais de Novembro. As expectativas eram altas e os desafios exigentes: Hillary entrara na Convenção desgastada com o duplo escândalo dos emails (primeiro, com os emails oficiais que teriam sido desviados para a sua conta de email privado, na sequência do caso de Benghazi; depois, com os mails que terão mostrado que Schulz – Presidente da Comissão Eleitoral do Partido Democrata – favoreceu Clinton no processo eleitoral do Partido Democrata) e em queda nas sondagens nos dias que antecederam a Convenção (fruto do espectáculo mediático que foi a Convenção Republicana e a empatia que a família Trump gerou em muitos americanos).
A verdade é que Hillary – e o seu staff de campanha – estiveram à altura do desafio: a Convenção Democrata bateu a Convenção Republicana em praticamente todos os aspectos, incluindo no aspecto mediático. Donald Trump apostou na dimensão familiar para mostrar que se revê nos valores conservadores e provar que é um homem honrado, com todas as virtudes que se exigem ao “líder do mundo livre” – Hillary Clinton aproveitou a oportunidade para refazer as dúvidas que ainda perpassavam sobre a solidez da sua vida familiar.
Os discursos de Chelsea Clinton e de Bill Clinton (embora em tons e linhas argumentativas diversas) pretenderam humanizar Hillary – mostrar que não é apenas um vulcão de ambições políticas e obcecada com o poder (como a ilustram os mais reputados membros do Partido Republicano ou, pelo menos, aqueles –minoria? – que apoiam Donald Trump). Não: Chelsea Clinton pintou o retrato de Hillary Clinton mãe e avó. Com tons muito sugestivos e cores impressivas. Sem gaffes, nem azo para os seus críticos lhe imputarem práticas de plágio ou de aproveitamento oportunista da criatividade alheia.
Chelsea Clinton não teve, pois, a arte, o engenho e a presença de palco de Ivanka Trump – foi mais discreta, mais comedida, sem entrar em considerações políticas. Talvez, por essa razão, tenha sido mais eficaz na valorização da mãe do que Ivanka havia sido quanto ao seu pai. Uma advertência quanto ao futuro: a disputa entre os filhos do clã Clinton e do clã Trump, mostra que Chelsea não tem grandes hipóteses de seguir as pisadas de seus pais, enveredando por uma carreira política de topo; já Ivanka Trump e Donald Trump Jr. têm talento e meios para alcançar um lugar na política americana porventura mais significativo e marcante que aquele que será atingido por seu pai. De entre os três Trumps, muito provavelmente Donald Trump foi o que teve um desempenho mais fraco na Convenção Republicana.
Por outro lado, Hillary Clinton respondeu ao espectáculo mediático montado em Cleveland por Trump – com um espectáculo mediático profissionalizado, convidando verdadeiros especialistas na matéria. Acusou-se Donald Trump de equiparar a Convenção do seu partido a uma final do “Super Bowl”, tal era a encenação, os efeitos especiais e a adequação entre os momentos da Convenção e as necessidades publicitárias. Pois bem, Hillary Clinton elevou a parada – convidou para actuar em Filadélfia, minutos antes da sua entrada em palco, Katy Perry, uma artista de Hollywood já deveras habituada às andanças de finais do “Super Bowl” (e que já actuara em outras iniciativas políticas de Clinton, como, por exemplo, logo no arranque das primárias em Iowa).
A história é conhecida: por altura da publicação do seu último livro “Hard Choices”, Hillary Clinton elogiou Katy Perry, que lhe prometeu escrever uma música para apoiar a sua candidatura presidencial. Em resposta, Clinton, no Twitter, escreveu que Katy Perry já tinha uma música que a descrevia na perfeição: “roar”. E assim, a música “roar” de Katy Perry ficou como a música da campanha presidencial de Hillary Clinton…
Pena é que a equipa de Hillary Clinton fez o que tanto criticara à equipa de Trump: excluiu da Convenção a cantora Ariana Grande, pelo facto de ter aparecido num vídeo a passar a língua por um donut. Razão: a organização da Convenção Democrata queria impedir mais embaraços políticos que prejudicassem a afirmação de Hillary Clinton…Afinal, quer seja Donald Trump, quer seja Hillary Clinton, quer seja outro qualquer – há sempre exclusões…Embaraços políticos, a quanto (não) obrigas!
No que respeita ao discurso, Hillary Clinton beneficiou objectivamente da força e impacto de duas intervenções anteriores – a de Michelle Obama e do Presidente ainda em exercício de funções, Barack Obama. Estes dois discursos voltaram a trazer a força do gene político Obama, fazendo os americanos recuar a 2008: nós somos dois exemplos do que só a sociedade americana pode produzir – dois jovens que nasceram em condições desfavoráveis; pelo trabalho árduo, chegam às melhores universidades americanas; depois, notabilizam-se no trabalho comunitário, que os levou à política institucional, até chegarem à Casa Branca. Barack Obama e Michelle Obama personificam o sonho americano – e esse seu carisma voltou a notar-se na Convenção Democrata deste ano.
E Hillary Clinton aproveitou: insistiu na mensagem da união entre todos os americanos, contra as divisões artificiais que o “outro candidato” quer promover. Elogiou largamente o Presidente Obama, elogiando o papel dos cidadãos afro-americanos na construção dos Estados Unidos da América. Frisando que a construção de muros significará a destruição do ideal americano – ou seja, Hillary Clinton quer reproduzir a “grande coligação” que conduziu Barack Obama ao poder em 2008.
Por conseguinte, ressalvou que os Estados Unidos só podem construir o futuro recordando que é o colectivo – “we”, “nós” – que permitiu que a nação americana se afirmasse como a maior potência do mundo; e não o “eu”, o “eu sozinho”, “ o homem providencial”. Ou seja: Donald Trump, ao afirmar que sozinho resolverá todos os problemas dos Estados Unidos, está a negar o “génio”, o “espírito”, o “modo de ser americano”. O amor vence o ódio – isto é, Hillary Clinton afirma-se como a Presidente dos…afectos. Qualificação que nos é bastante familiar. A nós, portugueses.
Finalmente, Hillary Clinton afiançou que cumprirá o acordo que firmou com Bernie Sanders, que consiste em aumentar o salário mínimo nacional e assegurar o financiamento estatal dos estudos universitários para todos os americanos. Desta forma, Hillary pode estabilizar o Partido Democrata, atenuando ou mesmo eliminando a fúria não contida de alguns apoiantes de Bernie Sanders, que se sentem defraudados com o processo eleitoral e o “sistema”.
Bernie Sanders, por seu turno, teve uma atitude de grande e nobre humildade, preferindo apoiar o partido do que defender os seus interesses políticos pessoais. E conquistou algo que muitos consideravam impossível até há bem pouco tempo: ouvir Hillary Clinton criticar duramente o “status quo” da política norte-americana. Até afirmou que “Wall Street” não pode ganhar a expensas da “Main street” – o que evoca os movimentos de base anarquista do “Occupy Wall Street”…
Dúvida para os próximos meses: conseguirá Hilalry Clinton manter, até Novembro, este exercício equilibrista, curioso e complexo, de falar à esquerda, sem hostilizar ou tão-só afugentar, o centro moderado? Veremos…