Sou da geração do cubo de Rubik, o famoso cubo mágico. Dediquei dias a fio a tentar resolver aquele puzzle. Havia quem o solucionasse de uma penada, e eu sentia-me estúpida. Decidi que não me deixaria vencer pelo cubo, e perseverei: não comia, não dormia, não saía de casa, não via mais nada. Quando consegui, em vez da enorme satisfação que antecipara, fui assolada por um vazio enorme. Os dias que dedicara ao cubo desfilaram diante dos meus olhos: dias miseráveis e miseravelmente perdidos.
Como todos os adolescentes, eu vivia obcecada com a morte e a irrelevância da vida. Queria fazer a diferença, deixar uma marca no mundo, e não sabia por onde começar. Sentia-me envelhecer a cada segundo. A recorrente ladainha dos adultos: «aproveita, estes são os melhores anos da tua vida», também não ajudava. Os melhores anos nunca são os da adolescência, com o seu cortejo de inseguranças, os seus contínuos confrontos entre a maldade dos outros e a nossa sensibilidade doentia, o cárcere da família e o desejo de uma liberdade ainda sem contornos nem conteúdo, as paixões profundas e os seus equívocos, o curto-circuito permanente na comunicação com o mundo. Com o cubo resolvido na palma da mão, sentia-me apenas frustrada. Essa experiência foi muito útil: nunca mais perdi tempo em jogos – a não ser, ocasionalmente, com umas palavras cruzadas.
Ainda participei nuns jogos de cartas, por puro dever social.
Recordo longos e divertidíssimos serões, anos mais tarde, a jogar trivial pursuit, pictionary ou mímica sobre títulos de filmes ou livros – jogos de convívio, que permitiam aprender alguma coisa sobre o mundo e sobre o comportamento humano (tema que nunca cessa de me fascinar) e, sobretudo, rir muito. Poucas coisas me estimulam tanto como a partilha do riso.
Mas o jogo pelo jogo, o jogo solitário, com dados, cartas, roleta ou maquinetas de qualquer espécie, vive da (e para) a insatisfação.
Quando se ganha, quer-se prosseguir – e acaba por se perder. A derrota leva a novas tentativas, e assim por diante: é um círculo infernal. Um vício.
Os jogadores dirão que a vida é apenas isso: um circuito de vitórias e derrotas. A diferença é que os amores, amigos, trabalhos e sonhos perdidos deixam rasto; um trajeto de memórias e realizações, cartas e fotografias, risos, lágrimas, atos que registam e transformam as nossas vidas e as vidas dos outros.
Um projeto falhado é muitas vezes a primeira e essencial nota de um projeto bem sucedido; um jogo solitário de sorte e azar não deixa qualquer traço. Ou antes: deixa-nos um imenso nada. A febre do jogo do Pokémon, que em Portugal se tornou instantaneamente viral, parece-me assustadora, um claro sintoma de depressão coletiva.
Sucedem-se os testemunhos festivos sobre esta nova moda: dizem que se trata de um jogo saudável, porque obriga as pessoas a andar muito, e favorece o contacto social e os novos encontros. Não vejo que raio de encontro possa existir entre rebanhos de pessoas marchando concentradas nos seus telemóveis.
Andar a pé estimula a circulação, tonifica os músculos, sim – e também o cérebro, quando esse andamento é livre e descansado, possibilitando um diálogo de cada um consigo mesmo ou com outros eventuais caminhantes. Pensar, escreveu Agustina, é o ato mais violento que há – porque toda a transformação humana nasce dele. Mas não pensar é aceitar passivamente a violência do mundo – e é nesse ponto que estamos: tentando alienar-nos de um mundo que nos parece imprevisível, incontrolável, aterrador.
A caça aos monstrinhos virtuais arreda-nos dos monstros da vida real – mas também das suas alegrias, encontros e infinitas possibilidades.
A expansão do terrorismo tem conduzido a sociedade a uma infantilização progressiva; o debate aceso sobre o que se deve ou não mostrar e dizer publicamente em relação aos ataques, às vítimas e aos criminosos, é muito revelador dessa infantilização, obcecada em esconjurar a morte, escondendo-a ou racionalizando-a em narrativas com uma história organizada.
Sucede, porém, que a multiplicação do terror e da morte já não se deixa conter em eufemismos nem na ordenação de um conto, qualquer que ele seja (e há-os para todos os gostos, à esquerda e à direita); e o próprio Deus se acha frequentemente na posição de suspeito, senão de simples desempregado.
Os poderes políticos não conseguem inscrever-se na imagem de pais protetores e providenciais: não sabem como retirar-nos do pântano da crise, quanto mais livrar-nos de uma bomba na próxima esquina.
E então surge o jogo dos gambozinos, que nos livra do pensamento, esse vírus do ócio. E a vida passa a ser apenas isso, uma irrelevante caça aos gambozinos, com a boa consciência de estarmos a agir a bem da saúde do corpo.
Vã saúde, que a morte sempre alcançará. A esperança é que não cheguemos a dar por ela. Entretanto, a vida passa. De monstro em monstro, sem deixar rasto nem riso.