«A natureza, em toda a parte, fala ao homem com uma voz familiar à sua alma». Colocada hoje em destaque, esta frase com toques new age passa despercebida ou é associada, talvez, a uma promoção qualquer de terapias alternativas ou à defesa do urso rosa ou do tigre da Malcata. Alexander von Humboldt escreveu-a algures em 1800, resumindo uma inédita valorização das sensações e da reação emocional para a observação e estudo dos fenómenos naturais. Influenciado por Kant e por Goethe, o naturalista alemão foi o primeiro a conceber a Terra como uma cadeia unificada e animada por forças interativas, logo vulnerável à intervenção humana nociva (é considerado o pai do ambientalismo), uma rede de vida cuja compreensão depende obrigatoriamente de uma «impressão do todo». Humboldt revolucionou a forma como vemos o mundo natural ao ponto de a clareza e clarividência dos seus ensinamentos quase apagar o seu nome da História. Em 2015, A Invenção da Natureza: As aventuras de Alexander von Humboldt, herói esquecido da ciência resgatou-o do esquecimento e conquistou o Costa Biography Award, o mais importante prémio para este género.
Quando faleceu, em 1859, nas vésperas do nonagésimo aniversário, era o segundo homem mais famoso do mundo (a seguir a Napoleão). Centenas de rios, cidades e outros locais haviam sido nomeados em sua honra, cerca de 5000 cartas eram-lhe dirigidas por ano, o seu nome era familiar por todo o globo e um anatomista alemão havia mesmo requisitado o seu crânio para análise aturada (ao que ele ainda respondeu: «preciso da minha cabeça por mais algum tempo, mas mais tarde terei todo o gosto em lha ceder»). Centenas de milhares de pessoas compuseram a procissão de um quilómetro e meio que acompanhou o carro fúnebre através de Berlim, empunhando bandeiras pretas. Nos EUA, os jornais noticiaram o fim da ‘era Humboldt’. Graças à biografia escrita por Andrea Wulf, torna-se fácil percebermos hoje o protagonismo deste viajante científico excecional, cujas ideias e abordagem multidisciplinar ainda podem ser tidas como proféticas.
Um colega testemunhou que ele era capaz de «percorrer a cadeia de todos os fenómenos do mundo ao mesmo tempo» e Goethe, grande companheiro de debate, explicou que «em oito dias a ler livros não se conseguia aprender tanto como aquilo que ele nos oferece numa hora». O essencial do retrato de Humboldt composto por Andrea Wulf (a biógrafa nasceu na Índia, cresceu na Alemanha e hoje vive em Inglaterra) advém da consulta da sua correspondência e de múltiplos registos pessoais. Optando por traçar mini-retratos de várias grandes figuras por ele influenciadas, como Charles Darwin, Thomas Jefferson, Simón Bolívar, Henri David Thoreau, George Perkins Marsh, Ernst Haeckel ou John Muir (dedica a estes três os capítulos finais), a historiadora acentua o valor do legado holístico e interdisciplinar de Humboldt, a sua ligação excecional da ciência à arte ou à política (foi anti-esclavagista e anti-colonialista).
Dissolvidos numa narrativa viva (são raras, e pouco extensas, as citações do próprio), os dados mais ínfimos sobre a vida, ideias e viagens de Humboldt são inteligentemente integrados para sustentar, sem folclore, uma grande ideia de e sobre o protagonista. Wulf segue de muito perto o herói, mas para nos dar uma perspetiva completa de um caminho de descoberta, experiência e registo. No mesmo parágrafo, explica-nos que o naturalista «achava difícil encontrar um método racional para estudar o que o rodeava» e que, nos cinco anos fundamentais de viagem pela América do Sul, os seus baús se encheram tão depressa que «tiveram de encomendar mais resmas de papel para pressionar as suas plantas e, por vezes, encontravam tantos espécimes que mal conseguiam levá-los para casa».
Humboldt perseguiu cada um dos fios da teia da vida, a 6000 dos 6300 metros de altitude do equatorial vulcão inativo Chimborazo, nas profundezas da floresta tropical (onde se deliciava com o coro dos macacos, procurando distinguir as contribuições das várias espécies) ou nas plantações coloniais junto ao lago venezuelano Valencia, onde primeiro se apercebeu do efeito devastador das desflorestações, tal como na siberiana estepe de Barada, dizimada pela epidemia de antraz, confirmou o impacto ambiental da agricultura intensiva. Atento às diferenças e semelhanças entre as coisas que via, mais do que à sua classificação, concluiu que os «poderes orgânicos trabalham incessantemente» e a vida pulsa por todo o lado. Isso mesmo tentou reproduzir (foi o primeiro divulgador científico com impacto transversal e universal) numa proto-infografia, um desenho de 90 por 60 centímetros representando o Chimborazo em corte transversal e toda a variedade e riqueza da rede de vida que o compunha. A biografia de Andrea Wuld reprodu-lo também a ele, Alexander von Humboldt, assim, detalhado e completo, uma «fonte que nunca secou».