Costuma dizer que não gosta nada de falar para câmaras. Para os gravadores faz-lhe menos confusão?
Faz-me menos impressão, porque estou habituada a cantar para gravadores. Mas acho que qualquer pessoa se sente um bocadinho invadida por um olhar que não é um olhar próximo, é uma máquina.
Mas os anos foram apaziguando essa estranheza?
Sim, uma pessoa vai-se habituando. Até porque até gosto de conversar do que andamos a fazer.
O que andam a fazer é apresentar este “O Melhor dos Clã”. Porquê só agora, ao fim de vinte anos de carreira?
Na verdade nunca sentimos muito essa necessidade de olhar para trás e reunir um apanhado dos nossos êxitos. Porque, na verdade, o que nos tem ocupado é sempre o que vem a seguir, o que vamos fazer a seguir. E cada etapa da nossa carreira tem sido sempre uma aventura nova. Nunca sentimos a necessidade de olhar para o passado e o compilar.
Então porquê agora?
Foi um convite da Warner [editora da banda] que, tendo constatado que passavam vinte anos que o nosso primeiro disco tinha saído, no dia dos namorados de 1996, achou que podia ser interessante fazer uma edição a assinalar essa efeméride. Falaram connosco mas nós explicámos que, estávamos numa altura complicada para pensarmos em propor alguma coisa porque tínhamos acabado a digressão do “Corrente” e estávamos numa fase de pousio, a começar a pensar no próximo disco. Não era mesmo a altura certa para olharmos para trás. E por isso propusemos à Warner que fossem eles, como editora, a apresentarem-nos algumas propostas do que poderiam achar interessante lançar agora. E eles apresentaram três propostas de alinhamento.
Como escolheram a vencedora?
Escolhemos a que nos pareceu fazer mais sentido, tendo em conta que era uma comemoração da nossa estreia editorial. As vinte canções que estão neste álbum são todos os cartões-de-visita que já lançámos. Ou seja, são todos os singles que já lançámos e aqui aparecem na ordem cronológica em que foram lançados. Resolvemos obedecer a esse contar de histórias.
É uma espécie de alinhamento de sonho de um concerto dos Clã.
(risos) A verdade é que são poucas as canções que constam neste álbum que não constam nos nossos concertos.
E não foi complicado abdicarem do poder de decisão e entregá-lo à editora?
Não, se fôssemos nós a fazer a escolha teria sido complicadíssimo. Para já, o que é isso do melhor dos Clã? É o que é melhor para a banda? É aquilo que achamos que são as canções mais bem compostas ou as que mais gostamos de cantar ao vivo ou aquelas em que tivemos convidados muito interessantes? Acho que seriam mais de seis discos diferentes se fôssemos nós a escolher. Assim foi uma maneira de facilitar a escolha como também de tornar isto num objeto mais próximo daquilo que é a razão da comemoração: lançar discos.
Apesar de ter sido esse o processo e de não terem sido responsáveis diretos no alinhamento deste álbum, fizeram na mesma uma viagem ao passado? E essa viagem permitiu-vos chegar a algumas conclusões?
Para já faz-me, faz-nos, muita confusão que já tenham passado vinte anos de Clã. Parecem menos. As coisas passaram rapidamente. Mas não há muita nostalgia, só haveria se encontrássemos no passado um momento em que fomos felizes e agora não fôssemos. Mas felizmente as coisas têm corrido bem e a sensação que temos é que fomos – e olhando para este elenco de canções percebemos isso – vivendo uma aventura de constante descoberta e constante mudança. Olhamos para o primeiro disco, o “Lusoqualquercoisa”, e para o último, o “Corrente”, e percebemos que são momentos muito diferentes da banda, de amadurecimento, de aprendizagem, de experiência… Temos hoje uma história muito mais rica do que tínhamos quando começámos e acho que é isso que é bom de constatar quando olhamos para esta compilação. Percebemos o que fomos aprendendo pelo caminho, a quantidade de parceiros que fomos conquistando, o facto de, de disco para disco, termos cada vez mais colaboradores a escrever connosco – começámos só com o Carlos Tê, mas depois juntou-se o Arnaldo Antunes, o Sérgio Godinho, o Adolfo Luxúria Canibal, a Regina Guimarães… Foi giro ver o clã dos Clã crescer. Mas o que é bom quando se olha para trás é perceber também que ainda há mais para fazer.
Numa entrevista recente disse que, se tivesse de pedir um desejo para o futuro dos Clã, era que continuassem sem contar os anos. Mas quando se celebra um número tão redondo como vinte e se lança um álbum para comemorar essa data, é impossível não contar os anos. Deu por si a pensar nos próximos vinte?
Não necessariamente. Nunca tivemos essa preocupação dos anos, mas a banda, desde o início, sempre quis ter uma carreira longa, e ser como os Xutos & Pontapés ou como os Rolling Stones (risos). Isto apesar de nunca nos termos projetado no sentido de ter uma imagem do que queríamos ser daqui a vinte anos. É sempre o passo seguinte que nos interessa. É sempre a curto ou médio prazo que nos entendemos. O que é que vamos fazer a seguir? Qual é o próximo disco, qual é o próximo espetáculo?
Acha que foi essa postura que permitiu aos Clã viverem fases e projetos tão distintos? Não temos muitas bandas que tenham lançado um disco para crianças com tanto sucesso como os discos para adultos.
Pois…
“Disco Voador” é um disco para crianças mas feito com a linguagem dos adultos. Acha que foi esse o segredo do sucesso?
Não podia ser um disco para crianças com a linguagem tradicional. Na altura em que fomos desafiados para fazer um espetáculo – que depois resultou na aventura do “Disco Voador” – já andávamos há algum tempo, porque já tínhamos filhos, a pensar que era interessante fazer alguma coisa para miúdos. Andávamos sempre a reclamar que não havia nada em termos musicais para os miúdos, eram sempre coisas muito infantis e muito totós e era uma seca para os pais irem ver esses espetáculos com os filhos. Quando falávamos nisso tínhamos sempre a ideia de que teria de ser uma experiência que pudesse ser partilhada por pais e filhos, avós e netos, mas sem a condescendência que normalmente se tem quando se está a fazer alguma coisa para miúdos, como se eles fossem menos capazes. Quando é o contrário, porque eles são espetadores muito exigentes e inteligentes. Essa aventura foi maravilhosa. Foi uma surpresa também para nós porque nunca imaginámos que, ao aceitarmos fazer um espetáculo para miúdos, daí resultasse um espetáculo só com canções originais e que acabaríamos quase forçados a ir para estúdio gravar essas canções e depois em digressão.
E que ganhassem todo um universo de fãs pequeninos.
Pois foi! (risos) A aventura do “Disco Voador” foi uma injeção de alegria, de energia e de inspiração para a banda. Não só a feitura do espetáculo porque estávamos sempre a pensar no público infantil e isso deixou-nos mais livres do que se estivéssemos a pensar no álbum sucessor do “Cintura”. Era tudo novo para nós. Nós, normalmente, quando partimos para um álbum novo, o que fazemos é reagir ao que fizemos antes, porque nunca queremos fazer igual. Mas aqui ainda era melhor porque era fazer uma coisa que nunca tínhamos feito, para um público muito especial. Foi uma liberdade muito grande que usámos com tudo o que tínhamos à nossa disposição. E depois houve outra coisa maravilhosa que resultou deste disco e que foram os encontros em escolas. E cada espetáculo tinha sempre uma energia incrível. Foi uma felicidade. Foi um momento muito divertido e luminoso na nossa carreira.
Como foi depois partir para o disco seguinte, já para o vosso público tradicional, o “Corrente”?
Foi muito engraçado, sobretudo já depois de o lançarmos, quando começámos a digressão. Na plateia havia sempre alguns miúdos. No final costumamos sempre ir ter com as pessoas para conversar um pouco e dar autógrafos, e quando encontrávamos um miúdo perguntávamos sempre se tinha gostado do concerto, se tinha ficado chateado por não ouvir nenhuma faixa do “Disco Voador”. Diziam sempre que não, e que tinham gostado muito do espetáculo. Foi interessante perceber que os miúdos gostam de ver concertos bem tocados e com músicas boas, são capazes de apreciar. As crianças têm a cabeça mais livre.
Esse desprendimento que permite a uma banda como a vossa fazer um disco para crianças da forma como fizeram, é o mesmo que a faz dizer, como já disse numa entrevista passada, que “quando acabar, acabou”?
Acho que sim. Enquanto tivermos o prazer que temos em trabalhar juntos, a urgência de quereremos fazer alguma coisa nova, vamos continuar juntos. Se essa vontade deixar de fazer sentido, se ficarmos só na nostalgia, a pensarmos nos sucessos antigos… Nessa altura, amigos como sempre, mas vai cada um para seu lado.
De que forma é que projetos como a banda Humanos ou o espetáculo “Deixem o Pimba em Paz”, com Bruno Nogueira, são injeções de energia para si e para os Clã?
Mais do que essa injeção de energia, são projetos importantes para aprender coisas novas. E cada músico dos Clã, quanto mais aprender em experiências que tenha, enriquece a banda. São novas descobertas que depois vêm connosco para a sala de ensaios. Eu, por ter trabalhado em espetáculos como o “Caríssimas Canções”, do Sérgio Godinho, em que não cantei mas estive a acompanhar quem canta, tornei-me mais atenta a, por exemplo, outros detalhes fundamentais para fazer uma canção funcionar. Dou muito mais valor aos meus colegas depois de ter estado um bocadinho do lado em que eles costumam estar. E isso são coisas muito importantes para ser mais útil na sala de ensaios e poder opinar com mais pertinência.
E também para poder colmatar aquela tristeza que diz que tem e que é não saber escrever canções?
(risos) Já fiz a paz com essa frustração. Mas admiro imenso quem o faz. Das coisas mais maravilhosas do génio humano é essa coisa do inventar do nada, seja um livro, um quadro ou uma canção. Mas não tenho essa capacidade.
Apesar dessa injeção positiva que diz receber dos projetos paralelos que tem feito, no caso dos Humanos, não houve nenhum momento em que tivesse receio que os Clã fossem engolidos? É que houve uma fase de enorme histeria em torno do projeto Humanos…
Sim, sim. Mas não aconteceu isso, primeiro porque ficou logo claro qual seria o nosso – meu e do Hélder [Gonçalves, mentor dos Clã, que tal como Manuela Azevedo participou nos Humanos] – envolvimento nos Humanos, quais as limitações que teríamos, por exemplo, em termos de tournées, que não teríamos hipótese de fazer. Quando aceitámos fazer o álbum e alguns espetáculos ao vivo sabíamos que seriam apenas coisas pontuais porque todos os envolvidos tinham outras carreiras. Portanto, os Clã estavam seguros de que eram uma prioridade, quer para mim quer para o Hélder, por isso ninguém se sentiu ameaçado. Em relação à reação do público, nunca aconteceu, em nenhum concerto dos Clã, pedirem para tocarmos uma canção dos Humanos. Nunca. As pessoas percebem bem a diferença. Até estávamos à espera que acontecesse, mas nunca aconteceu. Nem quando fomos a Amares, a terra do António Variações.
Em relação ao espetáculo “Deixem o Pimba em Paz” costuma dizer o “preconceito é um disparate”. De que forma é que ter tido sempre muito contacto com o folclore, através do seu irmão, lhe abriu os horizontes musicais?
Tenho a certeza que foi muito pela dança que a música se tornou uma experiência muito importante na minha vida. Aprendi a dançar danças folclóricas no prado, no meio das ovelhas a pastarem, ainda muito pequenina. Essa coisa das pessoas todas juntas a cantarem e a dançarem, o barulho dos socos no tablado… Tudo isso é uma coisa que ainda hoje me dá energia. Por isso ainda hoje me mexo muito em palco, é uma celebração física. Até o meu pai, a primeira vez que me viu em palco ficou muito preocupado com o meu despender de energia. Disse-me que tinha de comer sempre muito bem.
Ainda se lança à roda?
Já não tenho coragem, mas gosto muito de dançar, seja no bailarico ou na discoteca.
Como é que a moça que ia para o prado com o rancho se apaixona por musica clássica?
Os meus pais perceberam que gostava muito de dança e música, mas não havia escolas de dança em Vila do Conde, e havia uma professora que dava aulas de harmónio, a Dona Esperancinha. Os meus pais inscreveram-me quando eu tinha oito ou nove anos. Quando deixei a primária na minha aldeia e fui para o liceu em Vila do Conde, achei que era muito irresponsável continuar a ter aulas de música porque ia ser muito difícil conciliar tudo. Mas no ciclo apanhei uma professora de Educação Musical, a Teresa Rocha, que achou que eu tinha talento e convenceu os meus pais a que eu fizesse provas para o Conservatório do Porto. Fiz os exames, fui admitida, mas nessa altura abriu a Academia de Música de Vila do Conde. Comecei aí a estudar música, com o piano como instrumento, e fiz o curso geral paralelamente à escola.
Mas como via a música nessa altura? Imaginava uma carreira?
Não, achava sempre que tinha de ter uma outra solução profissional. Apesar de o piano me entusiasmar muito. E, nos últimos anos do curso, descobri o prazer de tocar com os outros. Como tinha muita facilidade em ler à primeira vista era muito solicitada para acompanhar outros músicos. Aliás, já na Faculdade de Direito cheguei a trabalhar como acompanhadora numa escola profissional. Tocar com os outros era o mais interessante para mim.
Ainda hoje mantém esse sentimento?
Sim, fazer música com os outros é o maior prazer do mundo. Estar sozinha em palco não tem graça nenhuma.
O que é que o facto de gostar de música clássica fez à sua adolescência?
Por acaso não tive a sombra nerd atrás de mim. Tinha amigos muito divertidos. O que aconteceu de estranho na minha adolescência – e às vezes sinto alguma pena – foi não ter uma relação próxima com a música mais urbana, a pop, o rock… O que consumia era música séria. O resto só ouvia em festas, porque gostava de dançar. Mas não tinha uma relação afetiva com bandas. Quando cheguei aos Clã era muito complicado ouvi-los falar de bandas que eu não conhecia bem. Era um bocado ignorante no universo da pop-rock.
Nessa altura pensava que só estava ali porque o fundador dos Clã, o Hélder Gonçalves, era seu amigo?
No início senti muitas dúvidas e inseguranças. Até porque não me via propriamente como cantora. Tive sempre uma relação difícil com a minha voz. Fiquei muito rouca logo desde nova, com a voz velada, e achava que não era uma voz bonita para cantar. Por isto estranhei a escolha do Hélder. Mas ele já quando nos conhecemos, na adolescência, tinha insistido que cantasse com ele, por isso cheguei à conclusão que devia ser tara dele. (risos) Mas quando comecei a trabalhar com os Clã tinha algumas inseguranças justamente porque era um universo diferente da música que costumava ouvir e daquilo que imaginava alguma vez fazer em termos musicais. Até porque, nessa altura em que vou para os Clã, a aventura musical estava quase posta de lado. Já nem tocava piano, estava concentrada no curso de Direito. Mas, apesar da minha insegurança, eles eram muito divertidos e o trabalho era estimulante. Com o tempo percebi o sentido que a minha voz podia fazer ali e foi trabalho, trabalho, trabalho. Até hoje.
Hoje em dia como é a relação com a sua voz?
Mais pacífica.
O que a levou para Direito – apesar da relação que já tinha com a música – foram os seus pais?
Não. Uma coisa extraordinária nos meus pais – sendo ele polícia e ela costureira, e vivendo em São Simão da Junqueira, numa aldeia do Norte, de gente muito simpática, mas muito católica, e onde, quando eu era jovem, ainda havia alguns papões sobre como se deveriam comportar as jovens raparigas – é que me deram sempre muita liberdade. Mas sei que foi difícil para eles. Até financeiramente, para me pagarem a universidade. Mas fui para Direito porque quis, tinha uma ideia romântica por causa dos filmes do Perry Mason.
Quando mudou de ideias em relação a Direito?
Quando cheguei ao estágio percebi que não tinha as qualidades fundamentais para ser um bom advogado. Divertia-me muito mais com os Clã e entretanto estávamos a lançar o primeiro disco, e tínhamos muitas solicitações. Achava que não estava a fazer bem nem uma coisa nem outra. Escolhi o caminho mais apaixonante. O outro só me deixava frustrada e triste e deprimida. Até para a minha saúde foi bom deixar a advocacia. Os Clã foram um caminho muito mais interessante para a minha vida do que teria sido o Direito.
A sua mãe ainda lhe fez roupa para espetáculos?
Para os primeiros, mas perdi a minha mãe pouco depois.
Em que momento se tornou fundamental para si regressar às origens e instalar-se, com uma casa e o estúdio dos Clã, em São Simão da Junqueira, aldeia onde nasceu?
Não foi uma necessidade de regressar às origens, mas um problema prático: ficámos sem sala de ensaios no Porto. Ainda pensámos alugar outra, mas depois eu tinha esta casa e resolvemos montar a sala aí. De seguida decidi também voltar a viver no campo. Foi um problema que resultou numa coisa boa, viver no campo.