Começou tudo num quintal. Os primeiros campeonatos antes de serem campeonatos nacionais, europeus e mundiais, foram campeonatos internos, em família e disputados num espaço exíguo. Eram realizados no quintal do Mário, ali na Gomes Freire 163, em Lisboa. Estamos a falar de Mário Moniz Pereira e dos dias gloriosos para uma criança de uma família abastada nos anos 30 do século passado quando tinha 10 anos e chamava o irmão Nuno, o primo Magalhães e o vizinho Mário Soares para irem para o seu pátio. “O quintal era pequeno, não tinha mais de 10 metros e eu convenci o meu pai a tirar os canteiros para poder jogar à bola e fazer umas corridas. Começámos a ter os campeonatos de atletismo ali… Havia triplo salto, salto com vara, peso e comprimento”, contava Moniz Pereira, lembrando os tempos quando convidava o Gigi muitos anos antes de este se transformar no Presidente da República Mário Soares.
A vida separou-os. Um seguiu desporto, o outro a política. Mas no prédio, os dois Mários estavam separados apenas pelo 1.º esquerdo, o da família Moniz Pereira, e o 2.º esquerdo, o da família Soares. “Vem cá abaixo que vamos começar os campeonatos”, lembra Soares no tempo em que era Gigi e ouvia o grito do vizinho. “O peso era com uma pedra pesada e quase nunca ganhava”, contava o Moniz, o primo Magalhães ficava quase sempre em primeiro. “O salto em comprimento ganhava eu e o salto em altura era eu e o meu irmão à vez”.
Mário Soares tinha menos três anos. “O Mário [Moniz Pereira] era o mais velho e era o chefe da banda. Gostava de fazer jogos com os miúdos e eu participei nisso tudo. Eram os meus amigos de sempre”, conta Gigi no documentário de António-Pedro Vasconcelos feito em 2012 para a RTP sobre a vida de Moniz Pereira. “Eram filhos de uma família mais rica do que a minha, mas não nos separava dos campeonatos do quintal”. Soares lembra as diferenças económicas, mas eram também políticas e, às vezes, os miúdos apanhavam sustos quando o prédio era invadido pela polícia – quando iam prender o pai Soares.
“Apanhávamos sustos grandes porque a polícia entrava à noite para apanhar o pai do Mário Soares”, conta Moniz Pereira sobre a separação dos dois. “Ele foi para a política e eu para o desporto. Não conseguimos manter a assiduidade de quando éramos pequeninos”, diz Pereira. Anos mais tarde, seria Soares, enquanto Presidente da República, a agraciá-lo como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, no dia 26 de março de 1991. Seria a mais alta condecoração que receberia, depois de ter recebido logo a seguir ao 25 de abril a Medalha de Mérito Desportivo, em 1976 e mais tarde a mesma condecoração em 1984. Também foi agraciado como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique (1981), Comendador da Ordem da Instrução Pública (1984), a Medalha de Mérito em Ouro (1985) e a Ordem Olímpica (1988).
Mário Moniz Pereira nasceu a 11 de Fevereiro de 1921, em Lisboa. Os primeiros saltos no quintal foram o primeiro pulo para se transformar na referência do atletismo nacional no pós-guerra, especialmente depois do 25 de abril. Sempre ao serviço do Sporting, clube do qual era o sócio número 2, e muitas vezes com a camisola da seleção de Portugal. Fez do atletismo a sua bandeira, a qual fazia uma defesa próxima da intransigência. Pelo Sporting foi, sucessivamente, atleta, seccionista, treinador e, por fim, vice-presidente, a partir da direção de Santana Lopes. Morreu no domingo passado, à noite, com 95 anos.
O desporto acompanhou-o, como se vê, pela vida fora. Acabado o Liceu, entrou para o INEF, atual Faculdade de Motricidade Humana, onde conheceu Maria Carlota, que viria a ser a sua mulher. “Encontrámo-nos a primeira vez à porta do Liceu Pedro Nunes no primeiro dia de aulas do INEF. “Queríamos pôr toda a gente do país a fazer educação física – como é que em conjunto fazíamos essa revolução?”, perguntava-se Carlota. Foi essa paixão pelo desporto que os juntou. Isso e uma viagem à Serra da Estrela, altura que Mário arranjou coragem para pedi-la em namoro. “Foi assim, dentro dessa luta, que a gente se foi conhecendo. E aí reparámos que escolhemos um ao outro”. A vida, fizeram-na juntos até 2013, quando Carlota morreu com 89 anos. Para trás, além de cinco filhos “e o ordenado de dois professores”, como lembrava ao contar a vida com Mário, conseguiu ser professora de ginástica, coordenar passeios a pé por Lisboa e frequentar as aulas de modelação em barro.
Maria Carlota fazia isto enquanto Mário andava por todo o mundo graças ao atletismo. “Estive em todos os Jogos Olímpicos. À custa do atletismo conheci muitos países do mundo”, dizia em 2012. Já depois da II Guerra Mundial, dava aulas como assistente e iniciava os primeiros passos como treinador no clube. O contacto com o estrangeiro, a partir dos anos 50, deu-lhe experiência. Aprender, sempre, era o seu lema. Foi aí que teve um dos encontros que lhe mudaria a vida, ou o seu curso. Nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, conheceu o checo Emil Zátopek. Numa noite depois das provas encontrou-se com o atleta do triplo salto Adhemar Ferreira da Silva, que viria ser o primeiro bicampeão olímpico do Brasil, e sentou-se ao piano a acompanhar o brasileiro a cantar, deixando espantado Zátopek. Essa cena ficou tão na memória do corredor checo que, quatro anos mais tarde nos Jogos de Helsínquia, depois de se ter sagrado campeão olímpico dos 5 mil, 10 mil e Maratona, foi ter com o “homem do piano” e lhe contou o segredo do sucesso que o professor nunca esqueceria em tantos anos de profissional: “Chove não tem importância, estou cansado não faz mal, tenho de treinar todos os dias senão os meus recordes vão ser batidos”.
Treino, mesmo com terramoto
A consagração só apareceu depois de 1974, depois de muitos anos de luta e quando já centenas de atletas lhe tinham passado pelas mãos. Conseguiu para os seus atletas a dispensa de meio dia de trabalho e isso foi o arranque para uma verdadeira “avalanche” de sucessos, com destaque para os títulos olímpicos e os recordes mundiais. Duro e exigente no dia-a-dia, a ponto de ganhar fama de obstinado e fanático, era venerado por quase todos que com ele trabalharam. “Viver é treinar, treinar é quase vencer”, leu Moniz Pereira numa revista brasileira. Juntou a frase à confissão de Zátopek. “Gostei muito, achei muito engraçado. E quando cheguei ao Sporting pus isso nos balneários. O treinar é trabalhar. Quem é que ganha? É quem trabalha mais”.
Os irmãos Castro, Domingos (prata nos Mundiais de Roma em 1987) e Dionísio (recordista europeu dos 20 mil metros em 1990), contam os treinos “bárbaros” que o professor lhes dava. “Chegávamos às sete da manhã e já lá estava à nossa espera, no fundo do corredor que dava acesso à pista de atletismo do antigo estádio do Sporting. Se chegávamos às 7h03 já não nos recebia com um ‘bom dia’ mas antes com um ‘boa tarde’”. Três minutos já dava para dar uma volta à pista.
Duro e exigente, os resultados começaram a aparecer, num país que vivia numa “ditadura futebolística”, como dizia para quem o quisesse ouvir. Ele que foi preparador físico da seleção nacional de futebol e muitas vezes era visto na tribuna da direção do Sporting a assistir a partidas de futebol.
“No Vale do Jamor, onde está agora o Estádio Nacional, vivi mais de 30 anos, quatro como aluno do INEF, 27 como professor do INEF e 4 como diretor do Estádio Nacional”, dizia sem se cansar com a memória prodigiosa que sempre o acompanhou. Foi aí que apanhou um dos defeitos do atleta português. “A qualidade de trabalho era boa, a quantidade é que era insuficiente. Os técnicos gostam muito de treinar a técnica e no atletismo é muito importante. Mas a técnica só é decisiva com a mesma quantidade de trabalho. Todos os dias há treino”. Mesmo que houvesse um terramoto.
“Quando me perguntavam se ia haver treino por causa da chuva dizia sempre que sim. Qual era o problema? – ‘E se houver um terramoto?’ – Enfiem-se pela brecha e comecem a correr…”, dizia no meio de umas gargalhadas. Humilde, agradeceu sempre aos atletas que acreditaram nele . “Eu tive vários atletas que acreditaram em mim e treinaram bastante. E chegaram a ter categoria internacional. Não vou dizer todos que graças a Deus são muitos mas saliento o Carlos Lopes, Fernando Mamede e os irmãos Castro”.
Irónico, mordaz, espírito vivo, apadrinhou diversas iniciativas como a Associação de Amizade Portugal, uma humorada resposta às associações de amizade que existiam a seguir ao 25 de abril. Se detetou o grande defeito do atleta português que era a falta de treino, apontou um maior e que desde cedo tentou erradicar: “Os portugueses têm um defeito que eu não gosto – acham tudo o que é estrangeiro é que é bom. Há maus e bons como em todo o lado”.
Em 1975 ficou com tuberculose e foi obrigado a estar na cama. Adoeceu por exaustão porque só pensava nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976. Aí, os atletas iam todos os dias à sua beira para receberem instruções sobre o treino. Carlos Lopes ganharia a sua primeira medalha, o segundo lugar nos 10 mil metros, no dia 26 de julho de 1976, ultrapassado pelo finlandês Lasse Virén, que escapou ao controlo antidoping e deixou para sempre a dúvida no ar se conseguia mesmo ser mais forte que o português.
Mas Moniz Pereira queria mais. “Só pensava em ver a bandeira içada e ouvir tocar o hino nacional. Era a sua grande ambição”, conta a filha Madalena. O pai confirma. “Numa entrevista que me fizeram e perguntaram qual era o objetivo número 1 depois de ter o curso e ser treinador de atletismo disse que era ter um dia um atleta treinado por mim a ganhar uma medalha de ouro”. Trinta e nove anos depois conseguiu. “Ao próprio Carlos Lopes estou-lhe muito agradecido porque acreditou naquilo que fazíamos nos treinos”.
O presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, definiu essa “madrugada gloriosa” vivida em Portugal quando Lopes cortou a meta da Maratona dos Jogos de Los Angeles em 1984. Mas até lá chegar, atravessou um percurso sinuoso. “Foi a minha primeira noitada em que aprendi que podemos não dormir uma noite inteira e ficar felizes”, escreveu num depoimento no “Expresso”, na qual explica como Moniz Pereira lhe mudou a vida e a vida do clube. E como mudou a vida do país. Até no fado, mas isso são outras músicas, que preferiu deixar para segundo plano.