O que o levou a querer seguir o caminho das ciências?
Nunca tive dúvidas de que queria ser cientista. Havia várias coisas que me agradavam nas ciências. Por um lado, a exatidão, o facto de se poder decidir – mais tarde soube que não era bem assim – se uma coisa estava certa, se estava errada. Nas humanidades é mais difícil. E apercebi-me muito cedo de uma outra coisa muito bonita. O objetivo da ciência é mostrar as semelhanças entre coisas diferentes. E isso para mim era um milagre. O Liceu Pedro Nunes também foi fundamental para o meu gosto pelas ciências.
Teve bons professores lá?
Os professores eram absolutamente espantosos. Tive um professor de Ciências Físico-Químicas – o Rómulo de Carvalho só entrou mais tarde – que era doutorado em Química no Politécnico de Zurique! O meu professor de Francês, o Joaquim Figanier, era o maior arabista de Portugal na altura. A minha vocação era para Matemática e Física, mas a melhor nota que tive no liceu, um 20, foi em História.
Para ser tão bom aluno tinha de abdicar de uma vida normal, tinha de estudar muito?
Não. Mas era organizado, não deixava as coisas para a última hora, ia estudando, era muito curioso, e tinha bons professores, que estimulavam e usavam métodos pedagógicos absolutamente extraordinários. Foi no liceu que aprendi música, aprendi a tocar piano, violino, cantava no coro, fazia teatro, aprendi jardinagem, carpintaria. E tinha uma vida normal. Brincava, ia a concertos, comecei a ir à ópera quando tinha quatro anos, fazia essas coisas todas e divertia-me. Mais crescido ia àquilo a que se chamava as boîtes.
Ia à ópera desde os 4 anos?! E não se aborrecia?
Pelo contrário. Aquilo era à noite, e os meus pais obrigaram-me a dormir a sesta, porque julgavam que eu ia adormecer na ópera. Mas eu não só não adormeci como depois queria ir a todas as óperas. Nessa altura já sabia ler portanto via pelo jornal o que ia haver. Quando não podia ir, ouvia todas as transmissões. Em 46 o São Carlos abriu, mas era caro, portanto arranjei uma assinatura para as chamadas varandas, por detrás da coroa. E foi daí que vi a Maria Callas.
Ouvia ópera, lia o jornal e teve 20 a História. Era uma espécie de menino-prodígio?
Não, não. Acho é que sou curioso e gosto de aprender. Comecei a ler muito pequeno, vou explicar-lhe e não há nada de extraordinário. Os meus pais recebiam o jornal todos os dias, O Século. E a terceira página era a página dos cinemas, com os anúncios dos cartazes – sou do tempo em que havia telões pintados nos cinemas e usavam esses cartazes na publicidade dos jornais. No fundo, aquilo para mim era um cartoon e comecei a perguntar: ‘O que é isto?’ E depois comecei a querer juntar as letras. T-U-D-O. Tudo. E depois já lia ‘E Tudo o Vento Levou’. E acho que um dia disse aos meus pais: ‘Olha, no Condes vai o filme tal’. ‘Como é que tu sabes?’. ‘Vi no jornal’ [risos]. É por isso que quando fiz cinco anos, como prenda me levaram ao cinema pela primeira vez.
Foram ver o quê?
O Aniki Bóbó, do Manoel de Oliveira.
Como decidiu que vinha estudar para o Técnico?
Quando acabei o liceu não havia cursos separados, era Ciências Físico-Químicas. Arranjei a papelada toda e fui-me inscrever, mas houve lá um velhote na secretaria que disse que faltava um papel. E eu respondi-lhe: ‘Está ali afixada na vitrina a documentação e não fala desse papel’. ‘Não está ali mas digo-lhe eu’. ‘Ai diz? Então deixe cá ver isso tudo que já não venho para cá’. Cheguei a casa com a papelada toda e os meus pais ficaram alarmados. Acabei por vir para o Técnico e tive imensa sorte porque aqui estudei a Teoria da Relatividade, tive um semestre de Mecânica Quântica, tive Física Atómica logo no 1.º ano, portanto a preparação em Física que se obtinha estudando Engenharia Química no Técnico era muito superior à preparação em Física na licenciatura em Ciências Físico-Químicas.
Mas mudou de curso só por causa desse velhote?
Nunca planeei o meu futuro. Sou uma pessoa atenta e tento aproveitar as oportunidades. E não me importo de mudar de opinião, que é uma coisa que os cientistas devem ter. A situação é outra e adapto-me. Sou uma pessoa pragmática. Aliás, lembro-me de dizer aos meus pais: ‘Até nem me importo que os professores sejam maus. Se houver um bom em cada ano já fico satisfeito’. E tive essa sorte. Todos os anos praticamente tive um bom professor.
Fez o doutoramento em Oxford. O que gostou mais desse período?
Eu já era talvez culturalmente um bocado virado para o mundo anglo-saxónico, mas chegar lá e ver como as pessoas são foi fabuloso. A minha cultura inicial era francesa. Ia ver filmes franceses, havia teatro francês em Lisboa, lia livros franceses. Depois, quando começo a aprender inglês, aquilo para mim foi uma revelação.
Um mundo novo?
Um mundo novo. E uma maneira de raciocinar completamente diferente. Num ensaio escrito por um francês, ele está sempre a citar, a mostrar a sua grande erudição. Mas isso não me interessa. Interessa-me é saber o que pensa aquela pessoa, qual é a sua abordagem. E tentar ver as coisas de uma maneira nova, não é ir ver como é que os outros viram. Porque se a gente começa a examinar esses olhares todos diferentes o nosso olhar também fica embotado.
E o que achava fabuloso nos ingleses?
O pragmatismo. Vou dar-lhe um exemplo. Oxford está a uma hora de comboio de Londres, de maneira que muitas vezes, para ir ao teatro ou a um concerto, eu apanhava um comboio às cinco e meia ou seis horas, que chegava às sete a Paddington, e dava tempo para ir aos espetáculos. Na plataforma onde parava o comboio conhecia imensa gente, colegas do laboratório, do College, ou o próprio supervisor. E depressa aprendi que era de bom-tom não se falar a ninguém. Nem dizer olá.
Porquê?
Porque se falasse podia sentir-se obrigado a ir sentado ao lado a viagem toda e a falar. E podia apetecer-me ler um romance, dormitar ou fazer qualquer outra coisa.
Não se deparou também com algum snobismo?
É preciso saber ler as coisas. Eles são snobes mas ao mesmo tempo são – agora não me lembro como se diz em português – self-deprecating, estão sempre a fazer troça de si próprios e a diminuir-se.