Do desfiladeiro de Fulda à brecha de Suwalki

Em 1949, o físico J. Robert Oppenheimer e outros cinco especialistas alertavam para os perigos das superbombas que então começavam a ser testadas. Passadas algumas décadas, o aviso continua pertinente. Sobretudo devido à atual de tensão entre a Rússia e o Ocidente.

«O vosso público, por sua vez, não tem a sensação do perigo iminente – é isso que me preocupa. Como não compreendem que o mundo está a ser puxado numa direção irreversível? Enquanto eles [a maior parte do establishment político-militar ocidental] fazem crer que não se passa nada. Já não sei como hei-de comunicar convosco».

Vladimir Putin

 

«Estou preocupado, muito preocupado, com que estejamos a caminhar como sonâmbulos para qualquer coisa de absolutamente catastrófico».

Sir Richard Shirreff

 

As declarações em epígrafe foram feitas muito recentemente por duas personalidades que serão tudo menos Cassandras mal informadas ou ingénuas: na primeira, Vladimir Putin dirigia-se a jornalistas estrangeiros presentes no Fórum Internacional de S. Petersburgo, em 17 de junho passado; na segunda, o general Sir Richard Shirreff, Deputy Supreme Allied Commander Europe (DSACEUR) entre 2011 e 2014, confessava assim há dias (29 de julho) a sua inquietação a um jornalista da Newsweek.

É claro que as soluções – não será a palavra ‘paliativos’ mais apropriada? – propostas pelos dois supracitados diferem diametralmente. Para Putin a NATO deverá cessar de imediato as manobras, que ele considera provocatórias, junto às fronteiras da Rússia. Há que convir que o nome escolhido para aquelas que ocorreram no passado mês de junho na Polónia Central e na brecha de Suwalki – Anakonda-16 – não terá sido o mais feliz. Evocando como a anaconda envolve e sufoca as suas presas, cerrando-as progressivamente entre os seus anéis, o nome terá mesmo algo de provocatório – assim também o pensaram os Franceses, que lhe colocaram algumas reticências. Em resposta, o Presidente Putin promove sucessivas manobras de grande envergadura nos territórios da Rússia europeia – com efetivos superiores e com componente nuclear mais explícita – provocando assim mais inquietação e alvoroço nos países vizinhos, numa espiral que se autoalimenta. Para o general Shirreff a solução passará por um crescendo na presença e atividade das forças da NATO na zona do Báltico com o fim de intimidar qualquer veleidade russa. Não será despiciendo referir que Sir Richard Shirreff publicou muito recentemente um livro de ficção intitulado: 2017, War with Russia, An urgent warning from senior military command. Os detalhes da sua trama têm os laivos de realismo que poderiam esperar-se de um antigo DSACEUR, mas não merecem aqui menção para além de que no livro, fundamentalmente, os Países Bálticos são conquistados pela Rússia, dirigida por um presidente chamado Vladimir Vladimirovich (o apelido nunca é referido, mas o nome próprio e o patronímico são indicativos). Segue-se a reconquista daqueles países pela NATO, sob a liderança política da Presidente dos EUA. Desta vez não há coincidência de nomes, mas uma Madam President ocupando a sala oval no ano de 2017 não deixa muita margem para dúvida sobre a identidade sugerida. 

Regressando ao terreno da realidade, note-se que a brecha de Suwalki, onde Anakonda-16 se desenvolveu parcialmente, substituiu hoje o desfiladeiro de Fulda como ponto de detonação ‘favorito’ para a Terceira Guerra Mundial. Se Fulda era o desfiladeiro por onde os magotes de tanques do Pacto de Varsóvia irromperiam na Alemanha Ocidental, é Suwalki que ocupa hoje o engenho dos kriegsspielers (os profissionais de jogos de guerra). Esta extensão de cerca de 100 km, que corresponde à fronteira polaco-lituana, separa o enclave de Kaliningrad (que é território da Federação Russa) da Bielorússia (que tem uma relação de parceria estratégica com a Rússia). Em caso de conflagração na região, teria lógica militar que as forças russas se apoderassem rapidamente desta brecha, isolando do território polaco os três Países Bálticos e tornando-os assim sua presa fácil. Parece plausível, estudando o mapa com os olhos dos kriegsspielers de antanho. Mas essa análise não colhe, tendo em conta quem seriam os antagonistas principais em tais circunstâncias: os EUA e a Rússia, as duas superpotências nucleares no momento presente e que dividem entre si equitativamente cerca de 95% dos arsenais nucleares globais. O mais provável é que o kriegsspiel fosse abruptamente interrompido pela irrupção destes arsenais: o jogo de xadrez convencional seria abandonado, com o tabuleiro e as respetivas peças voando violentamente pelo ar. Por essa altura já a Terceira Guerra Mundial estaria em curso e teríamos entrado no terreno do inenarrável, daquilo que é verdadeiramente obsceno sub specie aeternitatis.

O pessimismo de George Kennan

Como se chegou até este ponto? Era tudo isto imprevisível? Não propriamente. George Kennan, o influente diplomata, destacado inspirador da política de containment adotada pelo Presidente Truman no período do pós-guerra, teve a possibilidade, fruto da sua longevidade (1904-2005), de assistir ao colapso da União Soviética e de, alguns anos mais tarde, ainda com plena lucidez, alertar contra o alargamento da NATO aos antigos satélites soviéticos. Entrevistado em 1998, cerca de um ano antes da primeira leva de novos membros (República Checa, Hungria e Polónia), Kennan anunciou profeticamente: «Penso que é o início de uma nova Guerra Fria. Creio que os Russos reagirão progressivamente de forma adversa e que as suas políticas resultarão afetadas». Kennan acrescentou uma nota pessoal de amargura à entrevista ao despedir-se telefonicamente com a frase: «Trata-se do trabalho da minha vida e causa-me mágoa vê-lo assim arruinado no fim dela».

Numa outra entrevista, concedida um ano mais tarde ao The New York Review of Books, nos dias imediatos à intervenção da NATO no Kosovo, Kennan escolheu, como era seu timbre, a visão longa dos problemas: «Desde a Guerra dos Trinta Anos [refere-se o entrevistado à Alemanha do século XVII], nenhum povo, creio, tem sido mais profundamente ferido e diminuído do que o Russo pelas sucessivas vagas de violência desencadeadas contra si no violento século que finda. Passaram-se: a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905 [uma humilhante derrota]; a terrível perda em vidas humanas provocada pela participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial; as crueldades e as lutas que acompanharam a consolidação do poder comunista no período imediato àquela guerra; seguidamente, as imensas perdas em vidas humanas da Segunda Guerra Mundial; e finalmente, estendendo-se ao longo de sete décadas, penetrando e em parte dominando todos estes desastres, verificaram-se os imensos danos, sociais, espirituais, até genéticos, infligidos sobre o povo Russo pelo próprio regime comunista. […] Tais perdas enormes e traumas não podem compensados numa única década, talvez nem mesmo numa única geração».

É sob este pano de fundo que as tensões do momento entre a Rússia e o Ocidente devem ser analisadas. Evocam-se, acima de tudo: o trauma de Barbarossa, com mais de vinte milhões de vítimas mortais soviéticas, quase igualmente partilhadas entre militares e civis (a título comparativo refere-se que os EUA tiveram cerca de trezentas mil, praticamente todas elas militares); a sensação de cerco e de vulnerabilidade na Rússia (classificar tais receios de paranoides não altera a essência da questão – em assuntos de segurança, desgraçadamente, o subjetivo gera com celeridade o objetivo); a convicção de terem sido vítimas de um logro ao cederem unilateralmente e sem garantias formais, em 1990, os ganhos geoestratégicos alcançados com a vitória na Segunda Guerra Mundial (todo o processo de reunificação da Alemanha, que era inevitável, foi conduzido, na perspetiva dos interesses soviéticos de segurança, de forma um pouco amadorística por uma liderança sob enorme pressão interna). Distintamente, um quarto de século mais tarde e num espírito já toldado, novas linhas vermelhas são traçadas no solo.

Uma sugestão algo bizarra, mas pedagógica

Nunca é demais frisar como a arma nuclear colocou problemas totalmente novos à gestão das tensões geoestratégicas pelas duas superpotências no decurso da Guerra Fria. Tem-se em mente, sobretudo, a arma termonuclear (a também chamada bomba de hidrogénio ou de fusão) cujo poder explosivo é de amplificação teoricamente ilimitada mas que, na prática, figura individualmente nos arsenais estratégicos com potências tipicamente da ordem de entre algumas centenas de quilotoneladas (kt) de TNT e poucas megatoneladas (Mt); comparativamente, as armas atómicas de Hiroxima e de Nagasaki tinham a potência de cerca de 15 e de 20 kt de TNT, respetivamente.

A consideração de um poder explosivo desta ordem de grandeza tornou as armas em qualquer coisa de totalmente distinto. Em 1949, o físico J. Robert Oppenheimer, que fora alguns anos antes o responsável científico pelo Projeto Manhattan, assinou em conjunto com outros cinco especialistas uma adenda a um relatório oficial destinado ao governo americano. Nessa adenda surgiam os seguintes termos: «Seja claramente reconhecido de que se trata de uma superarma; está numa categoria completamente diferente da arma atómica. A razão para desenvolver tais superbombas seria ganhar a capacidade de devastar uma vasta área com uma única bomba. O seu uso implicaria a decisão de chacinar um vasto número de civis. Nós estamos alarmados com os possíveis efeitos globais da radioatividade gerada pela explosão de algumas poucas superbombas de magnitude concebível. Se as superbombas funcionarem de facto [os autores escreviam em 1949; cerca de três anos mais tarde estas armas foram detonadas com sucesso por Americanos e por Russos], não há um limite inerente ao poder destrutivo que com elas pode ser atingido. Em consequência, uma superbomba pode tornar-se numa arma de genocídio».

Era verdade e continua a ser hoje verdade, passadas algumas décadas. Pior ainda, estas armas podem ser atualmente detonadas sobre o território do adversário em intervalos de tempo cada vez mais curtos e de forma mais sub-reptícia, tornando assim os tempos de reação mais apertados e aumentando a inquietação e o nervosismo dos possíveis contendores.

O desarmamento nuclear é uma meta desejável mas provavelmente inalcançável nas circunstâncias previsíveis. Nenhuma das principais potências nucleares prescindiu da prerrogativa de renovar os seus arsenais e todas elas têm em curso programas de longo prazo para proceder a tais renovações. Seja por uma atração fatal de natureza faustiana, por obrigação patriótica, ou por orgulho profissional, cérebros de escol estarão sempre disponíveis para embarcar num projeto fisicamente viável e militarmente promissor. Assim, devemos partir do princípio de que as armas possíveis de serem efetivadas sê-lo-ão na prática.

Resta-nos, em consequência, a superior gestão política das tensões. Nesse sentido, a manutenção de canais de comunicação entre os líderes, bem como a contenção verbal destes, é aconselhável. A empatia e o respeito pela posição do adversário são obrigatórias, com a preocupação de cada um tentar colocar-se mentalmente na posição do outro. Em desespero de causa, restará o amor pela espécie humana, ou seja, o sentimento de humanidade dos líderes. Recordo uma menção, lida algures, ao encontro do Presidente Carter com o Secretário-geral Brejnev em Viena, no dia 18 de junho de 1979, creio. Acabavam ambos de assinar o tratado de limitação nuclear SALT II. Na privacidade possível no interior de uma limusine, despedindo-se, teriam os dois líderes segurado mutuamente as mãos e feito um ao outro a solene promessa de que nunca aquelas mãos premiriam os fatais botões nucleares. Atitude humana e comovente de dois «pobres homens poderosos». 

Mas, ensina-nos a História que muitas das grandes conflagrações do passado tiveram origem nas atitudes irrefletidas e por vezes provocatórias envolvendo potências menores – a rivalidade entre Argos e Corinto esteve na origem da Guerra do Peloponeso; a disputa de Sagunto e da Sardenha, na origem da Segunda Guerra Púnica -, que levaram posteriormente ao engalfinhamento dos seus protetores – é sabido como os cães de menor porte têm o mau condão de levarem os mastins a envolverem-se em luta. Por essa razão, a sugestão com que Nigel Calder termina o seu livro de 1980, Nuclear Nightmares: An Investigation into Possible Wars, só na aparência peca por bizarra: com periodicidade de alguns poucos anos, os líderes da pluralidade de estados deveriam ser reunidos num dado local para presenciarem, à distância segura de largas dezenas de quilómetros, uma explosão termonuclear. Seriam assim sujeitos à inolvidável experiência de entreverem a abertura das Portas do Inferno. Provavelmente, não restando a vontade para qualquer discurso inflamado, seguir-se-ia naquele areópago um silêncio compungido e temeroso, pedagógico também.

Este é o último de uma série de artigos de evocação dos 75 anos da Operação Barbarossa