Jorge Calado: “Chumbei um curso inteiro com zero valores”

Licenciado em Engenharia Química pelo Técnico e doutorado em Oxford, Jorge Calado recebeu o Prémio Universidade de Lisboa deste ano

Antes de começarmos a entrevista contou-me que na primavera dava aulas no jardim. Era um professor pouco ortodoxo?

Isso é melhor perguntar aos meus alunos. Acho que sim, eles ainda dizem isso. Era extremamente exigente mas completamente heterodoxo. Quando fiz 65 anos fizeram-me um simpósio e depois houve um grande jantar. Apareceram uma data de alunos que eu não via há muito tempo, alguns pouco mais novos que eu, porque eu comecei a dar aulas com 25 ou 26 anos. E houve um que veio e disse: ‘Estou aqui sabe porquê? É que sou do curso do zero’.

que foi isso?

Foi uma coisa que ficou histórica no Técnico. Chumbei um curso inteiro com zero valores.

Porquê?

Por uma razão muito simples. As datas dos exames eram marcadas pela direção do Instituto. E, na véspera de um exame, vem cá o delegado de turma, mais três ou quatro, dizerem-me que não estavam preparados. E eu disse: ‘Vocês receberam as datas há dois meses. Não é na véspera do exame que isso se vê”. Mas eles queixaram-se que saíam das aulas e tinham percebido tudo, parecia que não precisavam de estudar. E quando estudavam é que vinham as dúvidas. ‘Sei que o diretor não gosta que se altere mas eu assumo a responsabilidade. Vamos adiar o exame e a data escolhida vai ser aceite porque eu vou ter com o diretor e responsabilizo-me por isso’. ‘Então quando é?’. ‘Vocês é que vão marcar. Vão-se reunir, chamam o resto da turma, escolhem a data e veem-me dizer’. Ficou para o dia tal, mas nesse dia, de manhã, vêm-me pedir novamente para adiar. Eu disse ‘não adio’. ‘E as notas?’. ‘Têm zero’. Não acreditaram que eu fizesse isso, mas fiz. E disse-lhes: ‘Era para vos dar a cadeira no próximo ano e não dou porque vocês são pessoas sem palavra e eu não quero ter mais nada a ver com vocês’. Isto foi um escândalo no Técnico. E esta malta 30 anos depois vem-me dizer que foi a grande lição da vida. Fiquei todo contente.

Houve outros que lhe ficaram com ódio por isso?

Sim, sim. Não se pode agradar a todos. Mas acho que tenho grandes amigos em todas as gerações. E cheguei a fazer uma coisa que depois se tornou impossível: eu entrava, distribuía o exame, saía e não havia fiscalização nenhuma. E sei que não copiaram.

Como pode ter a certeza?

Tenho, porque dez, vinte anos depois, alguns ficaram meus amigos e vieram-me dizer: ‘Lembra-se daquele exame? Houve um que tentou copiar e a gente não deixou’.

Quase todos os professores universitários que conheci tiveram nalguma fase da carreira guerras com alguém. O facto de ser um professor heterodoxo nunca despertou a antipatia de outros colegas?

Fui odiado e sou odiado por muita gente. E orgulho-me muito disso. Também fui vítima de muitas injustiças. Nos anos 80, quando não havia muito dinheiro para a investigação, era o antecessor da Fundação para a Ciência e Tecnologia que subsidiava a investigação e os projetos. Consegui arranjar dinheiro, mas não era assim muito. E havia outros incompetentíssimos que tinham o dobro, o triplo. Soube que o presidente dessa instituição disse na presença de pessoas que me vieram contar: ‘O Jorge Calado não precisa de dinheiro porque ele consegue fazer investigação sem dinheiro’. Claro que há muita inveja. Quando passei a ser professor também na universidade de Cornell não imagina o que foi.

Como se manifestava?

Não era diretamente. Tive de ter muito cuidado para fazer as coisas todas muito legalmente, era preciso uma autorização especial do ministro da Educação, etc. Mas deu-me uma certa satisfação ser convidado como professor de Engenharia Química numa grande escola de engenharia, porque muitos colegas achavam que aquilo que eu fazia não era engenharia química. Mas sempre fui atacado. Dou-lhe um exemplo recente. Fiz uma conferência em Coimbra há poucos dias e, que eu visse, só lá estava um professor universitário de Química. Estava o antigo reitor, Rui Alarcão, uma pessoa que eu respeito muito, mas a maior parte dos professores não foram. Sei que as pessoas têm inveja de mim, da minha liberdade, porque eu sempre disse aquilo que pensava. Mesmo na ditadura batia-me com catedráticos e dizia na cara das pessoas aquilo que pensava. Nunca tive medo.

E problemas, teve?

Claro que sim. E lutei por muitas coisa que nunca consegui. Acho que a universidade podia ser melhor se me tivessem ouvido mais. Um dos problemas que tem é o envelhecimento do corpo docente. Temos de ter gente nova.

Mas também me disse que as gerações mais novas estão menos bem preparadas e que alguns deixam muito a desejar…

Pois, porque não são bem escolhidos. Muitas vezes são escolhidos para não fazer sombra aos que já lá estão. Isso continua a ser assim, porque as pessoas pensam só no seu interesse pessoal, não pensam no interesse da instituição. Esse é o grande mal dos portugueses.

Quando era professor apanhava erros gritantes?

É o preço que se paga por uma coisa muito boa, que é a generalização da educação superior. Quando eu era aluno, apenas uma percentagem mínima das pessoas completava o secundário e ia depois para o curso superior. A maior parte das pessoas só fazia a quarta classe. Só que quarta classe naquela altura quase valia uma licenciatura de hoje. Quando se dá esta generalização, já nos tempos da democracia, há muito mais gente a licenciar-se e o preço que se paga é que o nível desce. E desce muito. Num dos últimos cursos que dei aqui no Técnico, no quarto ano, a propósito não sei de quê, falei no Hitler. Estou sempre a olhar para os alunos e percebi que…

Que eles não estavam bem a ver quem era?

E depois perguntei: ‘Sabem quem era o Hiler?’. E a resposta é esta: ‘Acho que era um político do século XIX’.