Alguém disse certa vez que os adultos não passam de crianças obsoletas. A distância que vai da realidade à infância é provavelmente a da nossa imaginação, e a Disney desenterrou no quintal do seu passado as ossados de outro dos seus clássicos, porventura um dos mais excêntricos do catálogo. Quatro décadas depois, “Meu Amigo o Dragão” (“Pete’s Dragon”, no original) é um filme de que as crianças de hoje nunca ouviram falar e de que os seus pais terão perdido o rasto com tantas outras memórias doces ou selvagens e que se perdem à medida que o sol da infância se apaga.
Surgida em 1977, esta fita hoje deliciosamente datada, traz um dragão que pula da mitologia para a realidade como desenho animado, contracenando com os atores de carne e osso. Com estalinhos de língua e balbuceios, Eliot entendia-se perfeitamente com o miúdo, Pete, um órfão de nove anos que, não fosse o amigo verde e cor-de-rosa, teria perdido o encanto e magia da infância.
Na sua primeira encarnação, o filme era um musical que tinha as raízes do seu encanto num olhar acriançado, e a que não escapava um certo tom alucinado, sem no entanto perder de vista o seu carácter de conto moral e encorajador. Além de voar e cuspir fogo, Eliot podia tornar-se invisível, como qualquer amigo imaginário. O dragão andava pelo mundo a salvar crianças em situações de risco, e de um modo subtil deixava claro como, antes da religião e de qualquer outra fórmula de encontrar forças, a imaginação tinha um mundo que entrava em acção e alargava o seu horizonte de aventuras sempre que a realidade se tornava demasiado negra.
Numa altura em que Hollywood se parece ter rendido à ideia de que as melhores histórias, mundos e personagens já foram todos inventados, e em que a reciclagem continua a tirar grandes dividendos nas bilheteiras, já estamos mais do que habituados à reciclagem de clássicos sucessivos, mas neste caso só a premissa do filme, o título e os nomes das personagens foram recuperados. Se para os remakes de alguns dos tesouros da sua coroa a Disney foi buscar realizadores de renome como Tim Burton (“Alice no País das Maravilhas”) e Jon Favreau (“O Livro da Selva”), desta vez quis arriscar e chamou um jovem realizador indie com poucos filmes em seu nome, a maioria de baixo orçamento, David Lowery. A sua terceira longa-metragem, “Amor Fora da Lei”, estreou em 2013 no festival de Sundance, e deixou a crítica em sentido, com uma história de amor entre dois fora-da-lei dominado por um nota lírica e uma qualidade visual elegíaca que claramente foi buscar inspiração ao trabalho de Terrence Malick.
O filme chega hoje às salas portuguesas, e desta vez a tradução do título foi por outro caminho, ficando-se por “A Lenda do Dragão”. Lowery, que assina também o guião com Toby Halbrooks, foi fiel ao espírito do original ao manter intacto o seu encanto e força encorajadora. O dragão reencarna agora numa versão CGI, e os efeitos visuais tornam menos evidente a fronteira entre o universo real e o da imaginação, sendo esta uma versão mais madura, um filme que não quer apenas deslumbrar as audiências mais novas mas ligar toda a família. Com um cativante elenco, em que Robert Redford pontifica com a sua serena nobreza, o filme foi descrito pelo crítico da “Vanity Fair”, Ricard Lawson, como uma ode pungente à aventura ao mesmo tempo doce e difícil de crescer.
O regresso à infância nas costas de um dragão
Estreia hoje “A Lenda do Dragão”, remake de um clássico velhinho da Disney que nos relembra a amizade do outro mundo que tínhamos com a imaginação