Cabelos nas paredes. Capote e o horror

Há exatamente 50 anos, Truman Capote publicava a sua obra-prima. Mas “A Sangue Frio” deve ser considerado ficção ou não ficção? É apenas uma questão de etiquetas

Tom Wolfe, uma das figuras de proa do New Journalism, publicou em 1967 um artigo para a “Esquire” no qual observava como as parangonas típicas do jornalismo sensacionalista, marcadas por aquilo que o autor classificou como pornografia da violência, estavam a tomar conta de algum jornalismo mais reputado. Citando Marshall McLuhan, Wolfe faz um diagnóstico que pode ser integralmente transposto quer para o cinema de terror do início do século XXI, quer para as recentes polémicas acerca das imagens de vítimas dos ataques terroristas nas capas dos jornais: as imagens e as letras têm cada vez mais dificuldade em estimular em nós uma reação e, por isso, o seu grafismo tem-se extremado, como se a ligação entre a violência relatada e o sofrimento real das vítimas dessa violência fosse uma mera abstração. 

Na opinião de Wolfe, “A Sangue Frio” é também exemplo dessa tendência para explorar enquanto efeito o apelo sádico-sensacionalista das histórias. O argumento é simples, mas realça a intencionalidade da sequência em que Capote apresenta os eventos: uma história em que todo o mistério se esfumou, em que desde o início se sabe quem são os assassinos, já capturados, e em que se mantém sempre viva a promessa de algo inexplicavelmente violento e terrivelmente visual, mas guardado quase até ao último momento.

Os autores do crime de Holcomb, Perry Smith e Dick Hickock

Mas o que Capote fez, e que se tornou rapidamente uma imagem de marca de grande parte da literatura sobre crimes reais, foi importar uma forma de contar as histórias típica da literatura de terror, principalmente da norte-americana. A criação detalhada de ambientes de terror e paranoia, uma estratégia particularmente feliz nas mãos de Poe, procurava permitir aos leitores não só acompanhar microscopicamente o processo de enlouquecimento dos protagonistas, como, por assim dizer, senti-lo. Seja através da sequência não cronológica em que os eventos nos são apresentados – primeiro o dia do crime, depois o rescaldo, depois a formação da vontade criminosa e, por último, o corredor da morte –, seja através da forma como cada parte é construída com o objetivo de maximizar o terror que caiu sobre a cidade de Holcomb, o objetivo é manter no leitor sempre perante a mesma curiosidade: que violência?

Ainda a este propósito, e apesar do seu lugar secundário na obra, Capote não é estranho ao terror, tendo escrito alguns contos nesse universo literário, como “Miriam” ou “Master Misery”, para além de ter sido um dos responsáveis pelo argumento de “The Innocents”, um dos melhores filmes de terror da década de 70 e que adapta “The Turn of the Screw” (“Calafrio”) de Henry James. 

O crime de Holcomb Na edição de 16 de Novembro do “New York Times”, Capote encontrou um pequeno artigo acerca de uma abastada família de quatro – pai, mãe e um casal de filhos adolescentes – morta a tiro em sua casa, em Holcomb, Kansas. Nem a identidade dos assassinos, nem os detalhes da brutal execução das vítimas, nem tão-pouco o perverso e longo planear do crime eram na altura conhecidos. Ainda assim, Truman Capote decidiu dedicar a esta história os sete anos seguintes, preparando uma detalhadíssima análise do local, do crime, das vítimas, dos criminosos e de praticamente toda a gente com alguma coisa a dizer sobre os eventos. Fê-lo quase sempre acompanhado pela amiga Harper Lee, que um ano depois dos crimes escreveria “Mataram a Cotovia”, o livro que lhe garantiu, por direito próprio, um lugar na grande literatura americana do século XX. 

O sucesso crítico do livro foi extraordinário e o sucesso monetário ainda mais. Muito por isso, o importantíssimo debate teórico que aquele livro deveria ter motivado na sua época foi adiado. Pelo contrário, o debate foi quase sempre poluído por acusações estéreis, maioritariamente movidas por uns poucos autores de true crime, os quais, apercebendo-se do verdadeiro significado e impacto de “A Sangue Frio” – nomeadamente para a sua carteira –, atacaram o livro com aquilo que, um pouco mais tarde, se tornaria a crítica mais ressoante: conteúdo ficcionado num livro de não-ficção.

Comecemos por aqui. Ficção ou não-ficção é uma questão de etiquetas, um peso que, em “A Sangue Frio”, não deve impor-se por completo, mesmo que o seu autor, em parte, o tenha feito. A obviedade daquilo que distingue a ficção do facto não se transporta para a fronteira entre ficção e não-ficção porque esta distinção, no fundo, é apenas uma forma de arrumar estantes nas livrarias e, mais que isso, existem muitos géneros pelo meio a povoar esse espaço entre duas categorias tão rígidas. Se olharmos para o que hoje são os jornais, a ficção de Capote é assim tão diferente do que deixamos passar por notícia?

Sobra-nos o problema: existe uma ética uniforme para a não-ficção? Faz sentido exigirmos a um livro como este a honestidade ideal de uma notícia ou de um texto académico? Grande parte do conteúdo ficcionado serve um propósito muito específico, sendo simultaneamente um dos melhores efeitos do livro. Capote intuiu que o quádruplo homicídio da família Clutter envolve duas formas de luta entre bem e mal. Numa delas, vai-nos sendo sugerida uma cidade virada contra si própria, em profundo contraste com a descrição do local que, mais ou menos, inaugura o livro. A outra luta explora ao limite o binómio, confrontando os assassinos um contra o outro, Perry Smith contra Dick Hickock, realçando a assimetria profunda entre cada uma das partes do duo homicida.

Por um lado, um pedófilo e assassino sádico, que é Dick; e por outro, Perry, facilmente irritável, mas de temperamento sensível e artístico. É a caracterização de Perry, seja no contraste com Dick, seja na sua relação com o casal Meier, que Capote realça com alguns dos eventos cuja veracidade é posta em causa e, mesmo considerando a ficção, isso está entre os seus melhores momentos de prosa. É também a personalidade de Perry, a forma como Capote o viu, talvez o efeito mais perene da obra. “A Sangue Frio” é não-ficção que abusa dos privilégios da ficção e isso não significa que as fronteiras entre facto e ficção, entre romance e história verídica, não estejam acessíveis ao leitor que por isso se interesse.